Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Depois do aborto

A escritora e roteirista Renata Correa faz um duro e raro relato de uma das perdas mais subestimadas no universo do luto. Como ela diz: é como se uma gravidez interrompida não fosse uma experiência em si, mas sim um trampolim para a superação de ter uma nova gravidez, ou para um mergulho na escuridão do trauma

Interlúdio é aquele momento onírico que separa os atos em uma peça de teatro. Pode acontecer na literatura e no cinema também. Geralmente uma maneira de dizer para o público: Alexandre o Grande está no abismo, sozinho com o seu cavalo, mas ainda não acabou. Ou Agave está levando a cabeça de um leão para o palácio sem saber que é a cabeça de seu filho, mas calma. Ainda não acabou. Parece que acabou. Mas ainda há música, e depois da música a escuridão, e depois da escuridão, a história continua.

Em janeiro desse ano, eu descobri que estava grávida. Não foi um susto. Foi uma celebração. Eu já tenho uma filha, e sobre a gravidez dela eu dizia: estar grávida não me cai mal. Gostava de estar grávida, da lentidão, do mergulho interno emocional que a mudança do corpo trazia. Dar um filho para o Lucas, um irmão para Liz, um neto para minha mãe e um bebê para mim, de novo, parecia algo natural, algo simples, algo que eu faria. E eu faço coisas: textos, séries, livros, pessoas.

Mas fazer um novo bebê não é só um ato. São vários atos. Com interlúdios. É abrir espaço. Nas ancas, no coração, na cabeça, na casa. Nas ancas, ele rapidamente se instalou. Na casa, foi fácil. Na cabeça, estava feito. Mas no coração foi mais difícil. Alguma coisa dizia que não. E eu não sou mulher de receber não.

Os nãos tiveram formas variadas. Cada vez que eu negava um não, ele se transformava, e com uma nova roupa, se apresentava para mim. Começou com uma paranóia de levinho. Um pensamento maluco. “Uhum…acho que tem alguma coisa que não está bem”. Mas os exames diziam que estava tudo bem. O coração batia. O tamanho batia. O enjôo estava lá. Meus exames estavam bons. Bom, a paranóia é a companheira fiel da maternidade. Eu sempre tive muita sorte, muita saúde. Não vai ser diferente agora.

Mas estava sim, tudo diferente.

O segundo não veio quando eu pedi para minha intuição me dar um sinal. E eu sonhava muito. Com bebês que não eram meus. Bebês de amigas. Bebês que eu não conhecia. Eu pegava eles no colo, sentia o cheirinho inebriante da nuca deles e devolvia para as mães ou para o berço e dizia: esse bebê não é o meu. Não eram sonhos ruins. E, acordada, eu brincava com algumas amigas: talvez vocês queiram me fazer companhia nessa gravidez.

 

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O terceiro sinal veio com oito semanas de gravidez quando eu simplesmente não conseguia mais levantar da cama. Uma depressão como eu nunca tinha sentido antes. Uma depressão que fazia qualquer coisa perder o sentido, eu estava incapacitada, debilitada, o choro vinha e eu não sabia o porquê. Uma tristeza infinita me invadiu. Acolhi a tristeza. Acolhi a insônia. Falaram que era normal eu sentir tristeza – são os hormônios – mas não era uma tristeza qualquer. Meu corpo me derrubou na cama para que eu pudesse parar, observar e entender o que estava acontecendo.

Com dez semanas, a depressão passou, como mágica. Tive vontade de sair da cama, tive vontade de pedalar e pegar sol. Tive tesão. Wow. A gravidez é mesmo uma caixinha de surpresas, não é mesmo? É aqui. Prestem atenção, é aqui a beirinha do abismo, é aqui, onde estou sozinha com o meu cavalo, é aqui que eu danço no escuro, sem saber o que existe ali do outro lado. É aqui, que depois de gozar, feliz, por sentir meu corpo desejando novamente, que eu vi o sangue. Desculpem o excesso de honestidade. Talvez isso choque algumas pessoas pela mistura pouco convencional de tristeza, vida, sexo e morte. Mas deixa eu contar para vocês também que qualquer gravidez, mesmo as que vão bem e onde nascem bebês perfeitamente saudáveis envolvem tristeza, vida, sexo e morte. Estar grávida, independente do desfecho, é um dos poucos rituais de passagem incontestáveis que se mantém de pé na nossa sociedade. Você não é a mesma antes de engravidar. E não vai ser a mesma depois que não estiver mais grávida – seja abortando ou parindo.

A diferença é que o que acontece depois dos abortos pouco se fala. Pouco se diz, se verbaliza. Como se uma gravidez interrompida não fosse uma experiência em si, mas sim um trampolim para a superação de ter uma nova gravidez, ou para um mergulho na escuridão do trauma de nunca mais querer passar por essa experiência. Aprendi que mulheres podem parir uma vida, mas é muito comum também parir uma morte.

Cerca de 30% das gravidezes resultam em abortos espontâneos no primeiro trimestre. É bastante coisa, para se saber pouco do que nos acontece, o que acontece com os nossos corpos, e como nos acolher depois da experiência. Depois que contei para as pessoas próximas soube dos dois abortos seguidos da minha tia antes de ter meu primo. Dos abortos das minhas amigas. Do aborto de uma colega de trabalho. Senti profundamente não ter pegado na mão dessas mulheres, senti profundamente que a perda gestacional fosse um assunto tratado de forma doméstica e que eu não tivesse sabido antes tantas coisas que eu sei agora.

Depois de um ultrassom de emergência, tivemos o diagnóstico. Apesar da idade gestacional de dez semanas e três dias, o feto tinha parado de se desenvolver com oito semanas. Sim. Exatamente na semana onde tive o episódio depressivo inexplicável. Meu corpo fez um luto que eu ainda não era capaz de fazer. Luto que talvez eu ainda não estivesse preparada para saber. A minha obstetra e minha parteira receberam a notícia e me informaram e ampararam durante todo o processo. Poderia durar até um mês. Sangraria. Doeria. Seria um trabalho de parto, guardadas as devidas proporções. Caso eu tivesse febre ou excesso de sangramento e tontura, deveria falar com elas e ir até o hospital. Mas, na maioria dos casos, nesta idade gestacional, era provável que o processo se completasse naturalmente.

O tempo do corpo não é o tempo da cabeça. O tempo do corpo é o tempo da regeneração, da cura, da divisão celular e do fluxo de líquidos. Mas se a cabeça não autoriza, o corpo para. Ele espera. Ele não tem pressa. Decidi com o Lucas que precisávamos nos despedir. Não era a morte de um bebê – era a despedida de um desejo que tivemos juntos, um desejo de família – um irmão, um neto, um filho, um sobrinho. Que foi sendo desenhado juntinho de quem esteve junto com a gente. Cílios, cachos, dobrinhas, bochechas, choros. Não ia ter mais. A gente precisava dizer para nós mesmos, que não ia ter mais. E o que ia ter? Para mim, uma cólica forte, mas que não resultava em um sangramento do tamanho da minha dor. Era tudo pouquinho. Difícil. Para o Lucas, talvez o medo do desconhecido e a impotência que os homens têm diante de um fato biológico acontecendo num corpo que não é o seu. Essa bolha de não saber, que compartilhamos, cada um não sabendo do outro, mas juntos ali, esperando alguma revelação.

No outro dia fomos bem cedo na nossa praia preferida. Levamos flores. Mergulhei. Agradeci. Não tive cólicas nesse processo, o corpo esperou, ele parou para se realinhar com a realidade do que estávamos vivendo. Do lado direito da praia, o clube onde nos casamos. Do lado esquerdo, a felicidade estava tomando sol nas pedras esperando a hora de voltar a andar de mãos dadas com a gente. Mas não naquela hora.

Voltamos pra casa, de mãos dadas. E eu sentia muito sono. Um sono impossível de ser contido. Eu só queria deitar e deixar meus olhos derrubarem. E apesar do calor infernal do Rio de Janeiro, eu senti frio. Tomei um banho quente, pelando. Senti uma coisa se “desprendendo de mim”, na minha barriga. Mas nada aconteceu. Saí do banho, vesti um moletom e me enrosquei num edredom. Dormi pesadamente, dormi um sono de escuridão, dormi até ter um sonho onde eu derretia e virava água e voltava pro mar. Foi direto desse sonho que o processo de abortamento veio com tudo. O sangue escorria, vermelho vivo, profuso. E escorreu, dessa vez sem dor. Ter um útero é punk rock. Foi o que passou na minha cabeça. Punk Rock. E sem esforço, punk rock, sentada na privada expeli o saco gestacional – senti uma bola moldável, com uma consistência gelatinosa escorregando para fora de mim; o barulho na água foi alto, o Lucas veio ver. Mas na água, só sangue, impossível identificar qualquer coisa ali.

Não tem maneira de dizer isso de forma delicada se eu quiser ser verdadeira. Depois de um sangramento massivo, eu expeli um saco gestacional na privada do meu banheiro. Tomei banho e o sangramento foi diminuindo, diminuindo, a água no ralo ficando de vermelho, para rosa pra transparente até eu conseguir sair de lá sem sentir que ia desmaiar a qualquer momento.

E não desmaiei. Botei um absorvente, me vesti e senti um alívio misturado com tristeza. Alívio pelo corpo ter funcionado. Tristeza pelo fim. No banheiro tem um espelho grandão, de corpo inteiro e eu fiquei com medo de me olhar, mas abri a toalha e olhei. Tinha uma barriga de grávida, o útero inchado. Uma mulher pelada, molhada e triste é uma visão difícil. Queria ver quem eu era naquele momento. E o que eu vi foi uma fortaleza e um pano de chão, uma deusa imbatível e uma alga microscópica escondida numa fossa marinha. Uma música bonita entre atos, uma escuridão, e todo tempo do mundo antes que a história continue.