Inspiração - Como eu me sinto
“Estava me preparando para o vazio”
Foi no ano que meu primeiro filho nasceu que minha avó, Helena como eu, morreu. E de repente me vi numa clássica história de morte e vida. Meu filho com 2 meses e minha avó falecida. E por mais que eu tenha tentado, não cheguei a tempo de ir ao enterro. Foi muito doído. Não tive forças para entrar na missa de sétimo dia, fiquei no carro, com meu filho no colo, ao lado de uma grande amiga. Escrevi um texto para minha avó e minha mãe o leu. Mas não vi nem ouvi.
Permaneci distante, olhando toda aquela cena de longe. Distante. Com medo de entrar naquela dor coletiva. De me afastar do meu filho. Do leite secar. De arrancar o band-aid. Entrei naquela dor com calma, no meu ritmo.
Ainda estava na minha licença maternidade e o tempo que me permiti era outro. Passei mais de uma semana dormindo na cama da minha avó. Minha mãe, eu e meu filho no seu reduto. Juntos trazendo vida para aquele quarto, então, vazio da sua presença. Ver os dias começarem ali, amamentar, abrir a janela ensolarada do seu quarto, ouvir os bem-te-vis…
Essas semanas foram um alento para meu avô, para minha mãe, para mim. Parecia que aquele mundo em que havia tempo para viver a vida e a morte era possível. Mas depois voltei para São Paulo, numa rotina sem tantas folgas.
Minha avó sempre foi uma mulher que ocupa o espaço. Era notável. Dirigia um landau pela cidade. Jogava tênis. Abria todas as janelas, era amante do vento. E essa mulher me transmitia a sensação de que eu também era importante. E com esse sentimento no peito, saí de Belo Horizonte para viver na imensa São Paulo.
É difícil colocar esse sentimento em palavras sem correr o risco de ser mal interpretada. É que minha avó começou a morrer dentro de mim anos antes de falecer. Em parte porque o convívio era cada vez menor. Por outro lado, porque não a reconhecia tanto depois que ela teve o AVC. Eu já a estava matando dentro de mim. Parei de nutrir aquele convívio, não por desamor. Amor nunca faltou. Mas eu não a reconhecia mais na frente, nem naquele corpo.
Uma frase pesada, eu sei. Dizer que comecei a matá-la dentro de mim. Mas era o que eu sentia.
Ser dependente de cuidados era algo que fazia a minha avó enlouquecer. Ela não lidava bem com a fragilidade. Estava rancorosa e carente. Na defensiva ou no ataque. Com tudo e todos. Eu me sentia impotente e culpada. Não sabia como lidar com essa minha nova avó. E por isso recuei. Precisava de um tempo, que não tive, para reorganizá-la em mim.
Poucos anos antes de morrer, numa noite chuvosa e fria de São Paulo, minha avó me ligou. Eu estava na rua, na região da Paulista. Tivemos uma conversa curta e profunda. Talvez tenha sido a última assim. Ela ligou com a intenção de dizer que amava a mim e à minha mãe. Repetiu com veemência. Quis ter certeza que eu a havia escutado. Ouvi bem e não esqueço. Eu também te amo, e sinto saudades.
Na última vez que vi minha avó viva, fiz massagem nos pés dela. Tinha um creme especial na minha bolsa que deixava a pele muito macia. Ela adorou. Pensei em presenteá-la, mas fui mesquinha e guardei o creme para mim. Sinto vergonha sempre que penso nisso. Acho que, de uma forma, simboliza o que eu sentia dentro. Quanto mais eu a via frágil, eu me sentia frágil e incapaz de dar. E a distância aumentava.
Parecia que estava me preparando, inconscientemente, para o vazio. E na defensiva, para não ficar grande demais, eu já me recolhia dentro da minha casca. Sinto muito que não fui forte para te olhar na dor.
Das consequências de sua morte, creio que tenho muitos anos ainda para lidar com os lutos, que não param de aumentar. É que todo aquele “mundo mágico” de casa de vó já não existe mais. Não tem mais encontros, festas, tias-avós, tios, primos, não sobrou quase nada do que foi. É muito triste ver meu refúgio demolido, vendido e com um prédio em cima.
Se passaram oito anos da sua morte e sinto a falta da minha avó frequentemente. Sempre que escuto os bem-te-vis cantarem, ela canta dentro de mim. Das nossas memórias, me lembro de inúmeras com muito carinho. Conto algumas para meus filhos. Outras revisito em silêncio.
HELENA DE CORTEZ é mineira e publicitária e, morando em São Paulo, criou ilustrações para diversos livros, sendo que “Coração nunca se esquece” (editora Paulinas) é seu primeiro livro autoral. Casada, mãe de dois filhos e dois gatos, vem conquistando espaço no coração de muita gente.