Inspiração - A gente indica
Um livro da Chimamanda pra chamar de nosso
Será isso o choque? Quando o ar se transforma em cola?
Uma das minhas escritoras preferidas no mundo, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, perdeu seu pai, James Nwoye Adichie, em junho do 2020. Ele estava na Nigéria, na cidade de Abba, ela nos Estados Unidos, onde mora parte do ano. Por conta do isolamento imposto pela pandemia, não pode visitar os pais nesse ano. E não pode estar com seu amado pai quando ele morreu, inesperadamente. Foi através de uma ligação de zoom, que ela e seus irmãos, espalhados entre os diferentes cidades dos Estados Unidos e Nigéria, receberam a notícia do falecimento.
‘Inteiramente fora de mim, aos gritos, dando murros no chão. A notícia é como um desenraizamento cruel.” , escreve a autora. Nessa chamada de zoom que definiu como surreal, ela e os irmãos só conseguem chorar, chorar e chorar, em diferentes partes do mundo, olhando incrédulos para um pai adorado que agora deita imóvel numa cama de hospital.
Dez meses depois, a escritora dividiria sua experiência de enlutada no livro Notas sobre o luto (publicado aqui no Brasil em maio deste ano pela Companhia das Letras).
É um lindo, honesto e comovente relato. Como ela diz, o luto é uma forma cruel de aprendizado. “Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras, com a busca das palavras”. Ler o livro é vivenciar o luto da autora e revisitar o nosso próprio. Como minha colega Mariane Maciel escreveu depois de lê-lo: “um livro da Chimamanda pra chamar de nosso”. A Mari tem razão: a autora, que não é derrotada pelas palavras, “escreve sobre todos os aspectos do luto que a gente conhece e trata de abordar aqui. De um jeito maravilhoso.”
A começar pela tentativa desesperada da negação. Logo ao saber da notícia, conta que quase gritou quando a irmã disse que iria mandar uma mensagem para avisar um amigo da família. “Pensava: Não! Não conte para ninguém! Porque se a gente conta, vira verdade”. E por alguns instantes, minutos, horas, dias, não dá pra precisar, a gente pensa mesmo assim. Se eu ficar aqui em silêncio, a morte pode “desacontecer”. Mas o mundo não para a esse nosso comando.
“Sinto-me tomada por um estarrecimento incrédulo com o carteiro que continua passando, com as pessoas que continuam me convidando para dar palestras não sei onde, e com os alertas de notícias que surgem regularmente na tela do meu celular. Como é possível o mundo seguir adiante, inspirar e expirar de modo idêntico, enquanto dentro da minha alma tudo se desintegrou de forma permanente.”
Quando a gente lê a sua história e enxerga um coração se desintegrar da mesma forma que o nosso em um momento agudo de dor, entende o sentido de compartilhar esse sentimento visceral. É o conforto da identificação. A incredulidade da escritora diante do acontecimento me remeteu imediatamente ao relato de uma das muitas mães enlutadas com quem convivi depois da morte do meu filho, Gabriel. Essa mãe me contou que, depois de receber a notícia do acidente da filha, no percurso de sua casa até o hospital, passou por ruas iluminadas, restaurantes abertos, pessoas caminhando e conversando nas calçadas . Pensou então que não poderia ter acontecido nada com a filha, do contrário, aquele mundo em torno não estaria normal. Teria se acabado junto com ela.
O luto, como a sensação descrita pela autora não é etéreo. “É denso, opressivo, uma coisa opaca. O peso é maior de manhã, logo depois de acordar: um coração de chumbo, uma realidade obstinada que se recusa a ir embora.”escreve Chimamanda.
O seu luto é agravado pela distância do pai. Como tantos que perderam seus entes queridos durante a pandemia, ela não pode viajar para o funeral.Os aeroportos da Nigéria estavam fechados.
Entre as muitas sensações até então desconhecidas por ela com que Chimamanda entrou em contato foi do desmascaramento da suas antigas certezas sobre o significado da morte e das perdas. “Arrependo-me das minhas antigas certezas: você certamente deve vivenciar o seu luto, encará-lo, atravessá-lo. As certezas arrogantes de alguém que ainda não o conhece”.
Outra revelação: o quanto o riso faz parte do luto. “O riso está profundamente entranhado no linguajar da nossa família, e nós rimos ao lembrar do meu pai, mas em algum lugar por trás desse riso existe uma névoa de incredulidade. O riso vai se apagando. O riso se transforma em choro, que se transforma em tristeza, que se transforma em raiva.”
O luto traz palavras bem-intencionadas e inúteis. Platitudes que só servem de gatilhos para mais tristeza e raiva. “Ele descansou” não reconforta, escreve, “e sim provoca um muxoxo que acaba conduzindo à dor. Ele poderia muito bem estar descansando em seu quarto na nossa casa de Abba, com o ventilador fazendo circular o calor, (…) ” “Ele estava com 88 anos, causa uma irritação profunda, porque a idade no luto é irrelevante…”.
E o que conforta? “O que não parece um cutucão proposital numa ferida é um simples ‘eu sinto muito’, porque em sua banalidade essa expressão não presume nada. O igbo ‘ndo’ reconforta mais, uma palavra com fronteiras mais largas do que apenas ‘sinto muito’. Lembranças concretas e sinceras de quem o conheceu é o que mais reconforta, e me acalenta quando constato que as mesmas palavras se repetem: honesto, calmo, gentil, forte, discreto, simples, tranqüilo, integridade.
A escritora descreve em seu luto, uma dor comum a todos os enlutados e a nossa impotência diante do irreversível. Mas também nos acalenta com a história de amor sem fim por quem se foi.
Obrigada, Chimamanda.