Inspiração - Belas Histórias
As fotos do meu marido viraram uma exposição de amor
“Somos relicários de quem amamos. Nós os trazemos aqui
dentro, somos a memória deles e não queremos esquecer.”,
Rosa Montero, em A ridícula ideia de nunca mais te ver.
São cinco inacreditáveis anos sem o Marco.
Ele teria hoje 58 anos. Era fotógrafo, tinha bondade no olhar, um sorrisão tatuado no rosto e, nossa, era gato demais. Fomos casados por 13 anos. A alegria desse encontro era tanta, que nós nos casamos quatro vezes ao longo desse tempo.
Uma dessas vezes foi numa ilhota na Grécia, que era nosso canto preferido. Em um dos verões que passamos lá, resolvemos fazer uma cerimônia íntima na capelinha da ilha. Depois de um dia de praia, eu me enrolei numa canga branca, o Marco virou do avesso a camiseta que tinha Deus no peito – no caso, a marca de uma moto – e começamos a escalar um morro que leva à capela.
Fui na frente, metida a atleta, e quase no topo, levei o maior tombo da paróquia. Fotógrafo, muito antes de ser marido, o Marco clicou o segundo 1 do tropeço. Entramos no casamento, gargalhando.
O Marco trabalhou por quase 30 anos na revista Quatro Rodas. Foi o maior fotógrafo de carros do país. Para muitos, um dos melhores do mundo.
E o mais gente fina também. Há provas.
Dirigindo um carrão de teste para a revista, ele sofreu um sequestro relâmpago, vinte e poucos anos atrás. Durante o rapto, acalmou o ladrão, disse que o carro não era seu e que trabalhava na 4R.
Foi para a redação no dia seguinte e contou sobre o roubo do carro. Disse ainda que, trocando ideia, conseguiu que o ladrão, em vez de largá-lo numa rua escura, desse-lhe carona até um shopping. Pouca gente acreditou na segunda parte.
Dias depois, o Marco estava trabalhando, quando recebeu uma ligação da segurança da editora Abril. Alguém havia jogado pelo muro do prédio um saco com o nome dele. Ele foi até a portaria e, na presença dos seguranças, abriu o embrulho. Todo mundo viu o que tinha ali: uma porção de tubinhos de filmes que haviam ficado no carro.
Por cinco anos foi impossível ver as fotos
Foi justamente fazendo o que mais amava, fotografar carros, que o Marco morreu. Um dia, quando estava trabalhando em um dos maiores estúdios de fotos de São Paulo, o teto do lugar, onde havia trilhos de ferro, que seguravam câmeras suspensas, desabou sobre ele.
Desde a morte do meu marido eu pensava em fazer uma exposição com as lindas fotos que ele produziu — e não apenas de carros, mas de viagens, grafismos da cidade, instantes, tatuagens — mas cada vez que abria o computador dele, era tão doído, tão desesperador, que eu abandonava as pesquisas.
Um episódio de violência me fez perder a coragem de olhá-las, quase que definitivamente. Quando me avisaram sobre o horror que havia acontecido com meu marido, pelo celular, eu estava fazendo as unhas em um salão de beleza. Foi tudo muito trágico, e eu fiquei tão mal, que passei mais de um ano sem sair do nosso apartamento. As amigas colocavam almoço e jantar no elevador — eu não queria ver ninguém — para que eu ao menos comesse.
Passado esse ano, resolvi voltar a alguns lugares que viraram tabu, depois da morte do Má. E um deles foi aquele salão de beleza. Quando me viu, a dona me abraçou, choramos juntas e eu comecei a fazer as unhas. E então, dois assaltantes entraram. Colocaram um revólver na minha cabeça. Pegaram nossas alianças, a minha e a do Marco, que eu passara a usar, e o meu celular, que tinha centenas de fotos nossas.
Não tenho religião e, apesar das ajudas bem intencionadas que amigos espiritualistas tentaram me dar, eu não podia acreditar que aquilo “tinha sido um sinal do Marco para que eu me desapegasse dele, das nossas imagens juntos, e seguisse em frente”. Nunca entendi aquele assalto, e nem acho que haja uma explicação, mas o fato é que ele me tirou a coragem de olhar as fotos por quase quatro anos. Até dois meses atrás.
A tomada de coragem
A chegada dos cinco anos da partida dele, o estudo da psicanálise — uma pós-graduação que comecei neste ano –, e principalmente a aproximação que tive com outras mulheres viúvas que haviam conseguido de alguma forma homenagear seus maridos, foi me dando musculatura para tentar fazer o mesmo com o meu.
Recomecei a olhar os arquivos do meu marido. Foram noites de beleza, choro, ligações para as amigas no meio da madrugada, muito vinho e, confesso, remédio pra dormir. Era forte demais descobrir fotos das nossas viagens, das nossas noites, dos nossos casamentos… Em uma das madrugadas, achei um arquivo chamado “Juju project”. Eram fotos minhas, que ele fizera durante os anos que passamos juntos. O que teria sido esse projeto?
Fui construindo na cabeça uma exposição das fotos, dividida em temas, com duração de uma semana e que, por causa da pandemia, aconteceria pelo Instagram. Amigos fotógrafos do Marco, que eu tive a sorte de herdar, me ajudaram na curadoria das imagens.
Para cada um desses temas, escrevi um texto que contava histórias divertidas do Marco, envolvendo a produção daquele tipo de fotografia.
Um desses temas foi Grafismos da Cidade. O Marco fotografava todo dia. Várias vezes por dia. E a maior parte de suas fotos era feita na rua. Ele tinha um olhar especialmente interessado nos sinais, desenhos e grafismos das cidades.
Algumas de suas fotos mais elegantes são de fios cruzando o céu, encontros de linhas de prédios e sinalizações de trânsito e rastros deixados no horizonte por descarga de luz, fumaça e calor. A mim, passam uma sensação combinada de força e suavidade.
Ele curtia tanto esses recortes urbanos, que inventou de quebrar a parede que separa nossa cozinha da sala e colocar no lugar um porta de boteco. Daquelas de ferro, que quando sobem e descem, produzem um relaxante tátátátá.
Resisti por meses à ideia e aos amigos que, como sempre, ficaram do lado dele, até que instalamos a tal porta. Toda noite, ao chegar do trabalho, ele fazia tudo igual: “Façam seus pedidos”, tátátátá”, e em meia-hora já dava pra sentir o cheirinho do jantar.
Um dia, brincando com a porta, ele me olhou pensativo e: “a gente podia chamar alguém pra fazer um grafite nela”, sugeriu. Eu sugeri o divórcio. E conversa encerrada. Igual à porta, que até hoje, não recuperei a graça em abrir.
Três meses depois da morte do Marco, recebi um telefonema da dona de uma loja de quadros. Ela dizia que meu marido havia deixado algumas fotos em sua loja para que fossem postas à venda. Ao saber do absurdo que o tirara de nós, ela queria me devolver as fotos.
A mulher então veio em casa. Eu estava metida em um luto maciço; e tão magra, que foi difícil levantar os quadros para olhá-los de frente. Gostei de um especialmente. Acho que foi porque ele me transmitiu uma sensação de ar corrente.
Decidi colocar a foto na sala, no lugar onde estava uma gravura. A mulher segurou o quadro novo, enquanto eu tirava o velho. Ao soltá-lo do prego, vi, pela primeira vez, escrito na parede: “Juju, eu te amo. M.”
A exposição me deu a possibilidade de agradecer esse amor:
É um presente ser sua mulher, Marco.