Inspiração - Reflexões
Não fica mais fácil perder alguém que viveu muito
A dor de perder pais ou avós idosos é menor do que a da morte de alguém mais novo? Na teoria, podemos dizer que sim. Mas é só mesmo na teoria que vale o consolo de a pessoa querida ter vivido uma longa vida ,da qual todos ao seu redor puderam desfrutar. Por trás dessa racionalização, porém, há um turbilhão de emoções e afetos que independem do tempo passado juntos, das expectativas futuras e até mesmo das condições de saúde daquele que morreu. Amamos e choramos de saudade dos nossos velhos, assim como de alguém que teve sua vida abreviada precocemente. Com olhares diferentes mas sentimentos semelhantes.
Em seu lindo livro Lili, novela de um luto, (Companhia das Letras, 2021) a escritora Naomi Jaffe fala da longa vida e morte recente da mãe e revela fragmentos ásperos de como a sociedade costuma subestimar a tristeza pela partida de um idoso. (…) junto ao estranhamento provocado pela resposta sobre a causa de sua morte (ela faleceu em decorrência de uma infecção nos pés) , vem sempre a pergunta ainda mais incômoda: “Quantos anos ela tinha?”, ao que eu sou obrigada a responder, já antevendo o olhar aliviado que se seguirá: 93 Noventa e três anos de vida simplificam tudo. “Ah, bom, então ela viveu muito, teve uma família linda…”
A autora afirma entender que a idade deveria atenuar a dor. Mas se recusa esse alívio. “Às vezes penso que poderia até ser o contrário e que a morte de uma pessoa muito velha deveria ser como a morte de uma montanha ou de um totem – uma perda monumental, um abalo na estrutura de uma comunidade. Dona Lili, morta, seria como o fim de uma árvore frondosa. Foi”
Foi também a perda gigante de um totem o que eu senti, há algumas semanas, no funeral de uma tia muito querida, a Cida, mãe da Rita Almeida, uma das nossas parceiras aqui neste projeto sobre o luto. A Duda, como era chamada pelos filhos, viveu 97 anos, “a história completa de um século “, como escreveu Rita em uma linda carta para a mãe, tão transbordante de amor entre os filhos, netos e bisnetos, que não ficou na família o suposto consolo da longevidade e da completude da trajetória. Há pessoas tão insubstituíveis que o tamanho do percurso só aprofunda as raízes, deixa um buraco ainda maior no peito de quem ficou.
A verdade é que, por trás dessa forma leviana de encararmos as vidas longas que se encerram, há uma contradição perversa à nossa permanente celebração da vida e desejo de prolongá-la: a visão de que os velhos já podem morrer. A antropóloga e estudiosa da velhice há mais de 30 anos, Mirian Goldenberg , descreve esse sentimento como “velhofobia”, algo que já existia mas que, em tempos tenebrosos da pandemia e de um governo sem ética ou escrúpulos “vem saindo do armário de forma escancarada”, como escreveu em sua coluna da folha exatamente no Dia do Idoso, 1 de outubro,
“O que antes era invisível, escondido e dava vergonha nas pessoas”, escreveu Mirian, “agora é assumido. No início da pandemia, políticos, empresários e autoridades diziam abertamente que velho tinha de morrer mesmo. Recentemente, também ouvimos falar que ‘só morreu quem deveria’.
Nada disso reflete nem de longe a dor de ver alguém amado já bem idoso partir. Mas agrava o luto de quem ficou, que como tantos, é desmerecido e descuidado por quem pode e deve ajudar a família nesse processo. Uma pessoa querida ter vivido muito não consola o enlutado. “O mundo, tal como o conhecíamos, fica estranho e diferente. Desde que nascemos, ela estava lá, e assim aprendemos que seria a vida: ela sempre estaria lá”, me diz a Rita.
A árvore centenária que tomba deixa um buraco gigante.