Inspiração - Como eu me sinto
Histórias de luto: amor, saudade e aprendizados fundamentais para a vida
O Vamos Falar Sobre O Luto é um site criado há 7 anos por 7 amigas que precisavam lidar com o luto e sentiam-se pouco preparadas para isso. Se nós nos sentíamos assim, imaginamos que toda uma população de enlutados também buscava compreensão, carinho e aconchego.
Somos profissionais de comunicação e, provavelmente por isso, pensamos em ouvir as pessoas que passaram pelo luto para entender como elas se sentiam. Conversamos com 200 pessoas que, aliviadas, relataram seus lutos. A maioria delas contou que apenas escrever sobre sua vivência de luto (muitos pela primeira vez) já representava muito. Para nós, ler aquelas histórias também significou muito e imaginamos que poderiam ajudar muitas outras pessoas que passavam pelo luto.
E assim criamos o site que agora conta também com essa coluna no VivaBem. Hoje, temos centenas de histórias de luto no nosso site e cada uma delas nos conta o tanto do amor que permanece em cada relato. Trago aqui algumas delas que me marcaram de uma forma delicada e emocionante, que sei que irão tocar cada um de vocês também. Se cada luto traz um mundo de aprendizados, essas histórias que resgato aqui vão nos emocionar e nos ensinar.
Vai viver, cara
A primeira história que nos impactou fortemente foi a de um querido amigo, o Paulo Camossa, pai da linda Amanda, que viveu por 18 anos, 8 meses e 18 dias. O texto do Paulinho (com quem eu trabalhei por 10 anos na agência AlmapBBDO) é um alento para pais que perderam seus filhos.
Na nossa convivência, eu me lembro do Paulo viajando com a Amanda em suas férias, quando gostavam de ler um ao lado do outro na praia ou na piscina. Foi o Paulo que leu, junto com a Amanda, as instruções da embalagem dos absorventes, para aprenderem o que era uma menina viver suas menstruações. O Paulo, que já me emocionava cuidando daquela filha sozinho (era separado e a Amanda morava com ele), tocou-me ainda mais com a forma como reagiu à partida de sua filha.
Em seu texto para nosso site, Paulo nos contou: “Não sou cético e de fato não acredito que a vida é só o que temos aqui. Minha formação é católica e minha crença ligada ao Kardecismo. Porém, fé é algo que transpõe doutrinas. Prefiro não falar de religião porque essa ideia nos leva a seguir uma corrente só. A fé é um feeling, um sentimento, uma certeza de que existe algo além. No meu caso, de que a minha filha está comigo. Minha serenidade é 100% fé”. Mal sabia o Paulo o quanto iria me ajudar quando, 6 anos depois, vivi a mesma experiência com a partida do meu filho Paulo, aos 28 anos.
A festa tem que continuar
Também me ajudou a experiência da minha prima Cynthia Almeida, que viveu a partida do seu filho Gabriel, aos 20 anos, após entrar na faculdade que iria cursar. Cynthia, também fundadora do site Vamos Falar Sobre O Luto, deu seu depoimento à jornalista Laura Capanema, em que conta como se sentiu após a partida do Iel e também fala sobre o tributo que a família e os amigos prestam a ele todos os anos:
“As pessoas perguntam se depois de perder um filho ainda dá para dar festa, se dá para ser feliz. Tenho certeza que sim, embora de uma forma diferente. Tem dia que eu choro de saudade: muita saudade do Iel, muita saudade da nossa vida com o Iel. Não consigo mais fazer planos a longo prazo. Nem a médio prazo, confesso. Sei que a vida pode mudar a qualquer hora… Mas fazer essa festa me traz de volta, todos os anos, a alegria enorme de pensar que tive aquele menino. Eu sou a mãe dele —e vou ser a mãe dele para sempre.”
Quando meu pai agarrou uma pedra
Pelo nosso site passaram e continuam passando histórias lindas que nos fazem acreditar que toda história de luto é uma grande história de amor. Como a da jornalista Julia Garcez, que perdeu o pai aos 7 anos de idade, que tirou a própria vida aos 37 anos, uma carreira de fotógrafo promissora, situação financeira e um casamento estável de 10 anos.
No caso da Julia, o aprendizado foi entender que “não adianta continuarmos a vida toda buscando explicação para o inexplicável”. O luto por suicídio é um grande tabu que torna tudo ainda mais difícil para quem fica. A psicóloga Luciana Rocha mudou sua vida após a vivência do suicídio do seu marido, tornando-se psicóloga para pessoas com tendência ao suicídio e mesmo aos sobreviventes dele, aqueles que sofreram a perda de alguém querido que tirou a própria vida.
Luciana luta para quebrar esse tabu e consequentemente amenizar o próprio sofrimento e de seus dois filhos. Acaba de lançar um livro chamado “Nem covarde nem herói”, que busca a compreensão do suicida:
“O suicida não quer morrer. Ele está doente. Sua percepção de vida está completamente alterada. Ele não consegue enxergar nenhuma solução para o menor problema que o aflige. Nada que você o diga irá animá-lo. Ele precisa de acompanhamento psicológico e psiquiátrico.” Quantas e quantas pessoas Luciana vem ajudando, seja no seu consultório em Belo Horizonte, seja por meio de seu livro lançado recentemente. Foi uma linda reinvenção de rota, a partir do seu maior sofrimento de vida.
Que la vida siga
Uma reviravolta parecida com a de Luciana foi vivenciada pela família do consultor e filósofo Andres Bruzzone quando seu filho Pablo tirou a própria vida dias antes de completar 24 anos. Pablo deixou uma carta que começava com a frase: “que a vida continue sem mim”. E a vida continua – só que não exatamente sem ele, porque ele ocupa um lugar enorme.
Seu pai escreve lindamente sobre seu filho Pablo e o impacto da sua partida de uma forma que carrega muita dor: “Perdi não somente os abraços do Pablo, as risadas, a cumplicidade nas viagens de só nós dois, as músicas que compartilhávamos, o humor, curtirmos um seriado juntos. Além disso, perdi ilusões e, sobretudo, perdi um certo estado de inocência.
Talvez de maneira tardia e extemporânea, eu ainda tinha aos 50 anos algumas crenças que faziam mais fácil viver: achava que tudo tinha solução, que nada de verdade ruim poderia me alcançar. Achava que conhecia meu filho, que ele sempre teria em mim um recurso extremo. Achava que podia proteger a minha família dos males do mundo. Estava enganado. Coisas ruins podem nos acontecer a qualquer momento, mesmo aquelas tão distantes que fogem do campo do imaginável.
Meus filhos são pessoas e têm poder de decisão independentemente de mim, inclusive para voltar esse poder contra eles mesmos ou usá-lo de maneiras que eu não consigo entender e que me machucam. Como com as outras pessoas, dos meus filhos conheço apenas uma parte muito pequena, aquela que eles querem e podem compartilhar comigo —e o mesmo acontece no sentido inverso.
Não sou onipotente: há forças que me superam e que podem fazer mal àqueles que eu amo. Isso tudo eu aprendi: independente do motivo (que é inegavelmente triste) há nesse aprendizado muito de bom”.
Gratidão
Os aprendizados que tiramos do luto são a grande tônica de todos os enlutados que conversamos durante esses anos. A grande verdade é que um processo de luto tem o poder de mudar as pessoas (forçando-as a um novo recomeço) e de trazer infinitos aprendizados.
Isso é falado com grande sensibilidade pela Cris Guerra, uma publicitária que perdeu seu marido Gui subitamente cerca de um mês antes do nascimento do seu filho Francisco. Cris enfrentou a morte do marido escrevendo sobre o Gui para o filho Francisco, que não teve a chance de conhecer seu pai. Ela também criou o primeiro blog de looks do dia do Brasil, o “Hoje vou assim”.
Esse blog fez com que ela se sentisse viva, se sentisse mulher. Cris aprendeu fazendo. Nem todas as pessoas conseguem isso. Não faz mal, o importante é reconhecer que a forte e dura vivência do luto tem também o poder de tornar a pessoa melhor ou com mais propriedade sobre sua vida.
Ela fala sobre isso em uma das entrevistas que deu para nosso site: “A vida não é o que nos acontece, mas sim o que a gente faz com o que nos acontece. O [filósofo Jean Paul] Sartre tem uma frase que diz mais ou menos a mesma coisa, então eu não sou muito original? Mas nunca li Sartre, aprendi isso vivendo. Eu digo nas minhas palestras que a vida não tem controle e o importante é saber diferenciar aquilo que podemos controlar daquilo que não podemos. Aceitar o que não está sob nosso controle e tomar as rédeas do que está.
Eu acho que a morte nos ensina muito porque ela não é um problema a ser resolvido, não é uma doença —ela é um desfecho, um fato. Diante dela só nos resta vivê-la da melhor maneira possível. Ela é a maior prova de que a vida não está sob nosso controle.
Viver perdas importantes muda a maneira de encarar a vida. Eu, por exemplo, já não complico aquilo que não precisa ser complicado, não faço tempestadeem copo d’água. Se cada morte nos obriga a renascer —e renascemos ao sermos obrigados a aprender a viver sem a pessoa que partiu—, é melhor renascer numa versão melhorada, não?”.
Termino essa coluna com o neurologista e ensaísta inglês Oliver Sacks, em seu livro Gratidão, que traz quatro lindos textos do autor refletindo sobre sua própria morte, que aconteceu em agosto de 2015:
“Quem morre não pode ser substituído. Deixa lacunas que não podem ser preenchidas, pois é o destino —destino genético e neural— de todo ser humano ser um indivíduo único, encontrar seu próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte.
Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi. Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e uma aventura.”
Texto escrito por Rita Almeida na coluna VivaBem da UOL em 08/09/2022.