Inspiração - Como eu me sinto
Visitar cemitérios ajuda a aprender a lidar com as emoções do luto.
Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL
A frase esculpida na pedra grita o absurdo da morte precoce: ADELE, SEIZE ANS (Adele, 16 anos). Paralisada de susto, tristeza e medo, interrompo a caminhada por alguns segundos. Mais adiante, o túmulo de Charles me informa que ele faleceu aos seis e dessa vez eu estaciono ali por mais tempo. Nem é preciso subtrair do ano de morte a data de nascimento, a informação está lá para quem quiser ver (e também para quem não quiser), numa sepultura de esquina no cemitério de Montmartre, em Paris: seis. Seis? Seis! Foi em 1835 que Charles Louis Mogis morreu e, mesmo passados quase dois séculos, a morte dele ainda dói em quem toma conhecimento dela, assim como doem e sempre doerão todas as mortes de criança.
Penso que os familiares de Charles, assim como os de Adele sabiam disso ao escolher estampar na lápide a promessa não cumprida. Dezesseis anos! Seis anos! Soam como um pedido de prestação de contas e propõem uma matemática capaz de somar o espanto, o sofrimento e a revolta por trás de cada partida prematura. Parece protesto, mas é, antes de tudo, uma pergunta, incompreensão.
“Que seja feita a vontade de Deus” tenta responder outra lápide, lançando no mundo o desejo de que exista uma explicação por trás da vida e da morte, um regente que coordene cada história individual e que nos garanta um depois. O material desse luto é a resignação, penso, encarando o crucifixo sobre a sepultura e obedecendo ao protocolo: nome do pai, filho e espírito santo, amém. Cemitérios evocam o sagrado, convocam à espiritualidade. São um lugar seguro para a expressão do luto, onde chorar é permitido e todas as outras emoções são bem-vindas. Inclusive a alegria.
Suspeito que Emmanuel Charolles (1964-2019), enterrado sob uma sepultura coberta de flores coloridas (noto que estão plantadas em vasos, compondo um jardim particular) tenha planejado pessoalmente a decoração quase carnavalesca de seu jazigo onde são exibidas pinturas em cores vivas e uma foto do falecido sorrindo, abraçado a um gato. Como muitas outras sepulturas de artistas, a instalação festiva destoa do bege e do cinza sisudos da vizinhança, exibindo sem pudor cores, imagens e otimismo.
“O que os artistas têm que os outros não têm?” é a pergunta que me acompanha enquanto passo diante da tumba da cantora Dalida (1933-1987) e me flagro dizendo bonjour para sua estátua em tamanho real. Aos pés da personalidade mais famosa do cemitério se acumulam bilhetes, velas e flores trazidas por seus fãs. São eles que tornam alegre o jazigo dessa bela mulher, famosa por falar e cantar em 10 idiomas e a quem se atribuem mais de 140 milhões de discos vendidos.
Dalida tirou a própria vida aos 54 anos de idade, mas segue vivíssima no imaginário de seu público. Artistas de seu tamanho, quando partem, ficam. De certa forma, não é preciso ser famoso ou exibir talentos extraordinários para permanecer. Quando alguém lê os dizeres impressos numa tumba —ou neste texto—, os mortos aos quais as palavras dizem respeito voltam a existir, ainda que brevemente.
Talvez seja por isso que muitos dos mausoléus franceses, principalmente os mais antigos, reproduzam informações tão detalhadas sobre os feitos de seus mortos. Diante da escultura e do CV de um advogado que dedicou sua vida à abolição da escravatura, celebro e felicito sua existência e agradeço pelos serviços prestados a uma causa tão importante.
Também comemoro a vida daquele que escolheu resumir sua trajetória numa única informação: a adesão à Resistência nos anos em que os nazistas estiveram à frente do governo francês. Morada de muitas personalidades célebres, o cemitério Père Lachaise é palco de uma verdadeira competição de realizações. Não me refiro apenas a gente como o cantor Jim Morrison ou o escritor Oscar Wilde, mas também a autores de descobertas médicas, protagonistas de batalhas importantes e muitas outras conquistas ali divulgadas.
Ainda hoje me pego rindo sozinha quando me lembro do jazigo de Vittorio, um italiano falecido aos 27. Seu rosto está eternizado numa máscara mortuária levemente sorridente e exibe uma cabeleira que lembra os tentáculos da cabeça da Medusa. Nunca me esqueci do texto gravado abaixo da escultura: “Amou Stendhal, Pink Floyd and that’s all, folks [e isso é tudo, pessoal]”. Vittorio se divertiu. Amou. Parece ter partido em paz.
Fazer o luto é encontrar um sentido particular e íntimo para cada morte que nos atinge, é tecer uma narrativa que nos conforte e nos sirva de bengala para seguir adiante, para além dos discursos prontos que a coletividade nos oferece: “Pensa que agora ele já não sofre mais”, por exemplo. Uma observação atenta dos túmulos num cemitério dá pistas da postura de cada um diante da morte. Como Vittorio, os mais corajosos conseguem fazer o luto de sua própria finitude. Para homenagear esse jovem que nunca conheci e nunca esqueci, encerro esse texto recorrendo ao bordão com o qual ele se despediu: that’s all folks.