Inspiração - Como eu me sinto
O luto masculino é um silêncio que carrega um grito
Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL
Desde que lançamos nosso projeto “Vamos Falar Sobre O Luto”, um fato me intriga: por que os homens não são tão presentes quanto as mulheres no site e em tudo o que vejo relacionado ao assunto luto?
Treinada a tentar achar uma resposta para tudo, já que minha profissão é mapear e entender o comportamento humano, encontrei uma explicação: homens costumam falar menos sobre suas emoções, são mais fechados e, quando estão com os amigos, encontram conforto através de outros assuntos.
Pelo menos, era uma explicação, porém não me foi suficiente, continuava sentindo que tinha muito mais por trás do silêncio masculino na sua vivência de luto. Foi assim que resolvi perguntar para o Daniel Carvalho, pai da Joana (que nasceu no dia 27 de dezembro de 2017 e viveu até 2 de janeiro de 2018). Nove meses e seis dias de vida, um curto tempo nesse mundo e vivendo na CTI (Centro de Terapia Intensiva). Uma complicação no parto levou para esse desfecho devastador para seus pais, Daniel e Noemi.
E aí começa a história de superação desses pais frente a maior perda de suas vidas. Não demorou muito e os dois foram buscar conforto em um grupo de ajuda, o “Do Luto a Luta”. A experiência do Daniel no grupo foi muito marcante. Primeiro, ele observou a mesma coisa que vemos no “Vamos Falar Sobre O Luto”: de 15 participantes, só dois eram homens —Daniel e mais um.
No momento da apresentação, o outro participante, hoje amigo, declarou que estava lá pela mulher, para ajudá-la a superar o seu luto. Daniel achou que deveria responder a mesma coisa e assim fez. Só que não ficou confortável com a resposta. Isso, de fato, é o que é esperado de um pai que perde uma filha ou um filho, que ele seja o principal suporte da mãe enlutada. Sim, claro. Mas é muito mais do que isso. Ele tem seu próprio luto para atravessar. E foi com essa intenção que Daniel, em março de 2019, resolveu criar o grupo “Luto do Homem”: um espaço exclusivo de homens para homens, que já acolheu centenas de diferentes lutos.
O “Luto do Homem” tornou-se um espaço de reflexão, ajuda e entendimento da experiência do luto masculino. O primeiro aprendizado: não existe um homem de luto. Esse espaço é plural, são muitas masculinidades.
“No meu projeto tem pais, filhos, homossexuais, trans, uma diversidade de experiências. Um homem que perde o namorado assassinado é uma experiência única, diferente do homem que perdeu a mãe ou o filho. Tudo isso conta no processo de luto de cada um. O importante é que todas as masculinidades possam ser ouvidas no grupo, é um espaço para isso. O grupo tem turmas semestrais que funcionaram remoto na pandemia. A próxima turma volta a ser presencial no Rio de Janeiro (veja mais informações no perfil do Instagram @lutodohomem).
Daniel me fala sobre outro aprendizado que trouxe a explicação que eu tanto buscava:
O homem em luto não fala porque acha que não é permitido falar, mas a consequência é que as pessoas acham que ele não sente. É preciso saber escutar o silêncio do homem que vive o luto. O silêncio realmente incomoda, mas não a ele e sim aos outros. Costumo dizer que esse silencio é um grito.
Daniel Carvalho
Entendi Daniel, como eu estava enganada a respeito desse assunto.
Três voluntários juntaram-se para cuidar desse grupo tão fundamental: Leonardo Peçanha e Xico Claudio, que perderam e homenageiam suas mães, e Rafael Stein, que ficou viúvo e segue cuidando de seus dois filhos. Além de conduzir os encontros de escuta, os quatro também falam em universidades, espaços digitais e assim espalham o tema do luto masculino e o conforto. Daniel quer ver esses grupos se multiplicarem em outros cantos do país, mas orienta: a tendência é funcionar melhor quando os moderadores são homens, porque parece haver mais escuta, liberdade e entendimento.
Daniel fala sobre o grande desafio do Projeto Luto do Homem: “que, ao final dos oito encontros do semestre, sintam que há espaço para seus sentimentos”. Muitos dos que por eles passaram encontram conforto não nas palavras, mas na leitura, na jardinagem, na cozinha, no artesanato ou em qualquer outra atividade que use as mãos, a cabeça e o coração. Como a última história que Daniel me contou, de um pai que perdeu a filha e no dia seguinte começou a cuidar do seu jardim, construindo, inclusive, um jardim suspenso na parede. Sua esposa lia aquele processo como a negação do luto, mas alegrou Daniel ao lhe contar que na verdade entendeu que é ali que ele consegue expressar seu luto.
No ano passado, um novo portal se abriu para Daniel e Noemi. Ela ficou grávida e ao mesmo tempo receberam a resposta positiva de adoção, que há tempos tentavam: dois filhos! Há menos de um mês chegou o Antônio e a qualquer momento chega mais uma emoção para essa família, que está ficando grande: já tem a Joana, o Antônio, o filho que está chegando e mais um filho: Daniel começou um doutorado sobre o luto esse ano e vai continuar levando seus aprendizados para outros homens. Agora, sabendo que a vida pode ser difícil, mas ela se reinventa, nos surpreende e, principalmente, nos apresenta caminhos de cura, como o grupo lindo que ele fundou há dois anos e já ajudou tantos homens. Viva a Joana, que enorme inspiração.