Inspiração - A gente indica
‘Pra Quando Você Acordar’: quando escrever ajuda a conhecer sentimentos
Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL
Você não vai acreditar, Ita, mas entrevistei a sua irmã Bettina e me emocionei muito com a sua história. Me encantei com o poder da escrita para curar e fazer pensar. Que livro, Ita, eu queria muito ter conhecido você. Para merecer uma homenagem desse tamanho, você deve ter sido o cara mais legal do mundo.
Conversei acima com o Ita, que atualmente já habita outro plano, porque me inspirei na Bettina Bopp, sua irmã, que escreveu um blog enquanto esperava o irmão, Ita, voltar de um coma de 15 anos. O blog falava diretamente com o Ita, como se ele pudesse ouvir (e certamente ouviu), contando as mudanças que iam ocorrendo no mundo e na família ao longo de seu sono.
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O blog foi retrabalhado pela Bettina e acabou de virar livro pela Editora Planeta. O Ita não voltou, mesmo assim está presente em cada palavra do livro “Pra Quando Você Acordar: Crônicas de Saudade e Espera”. Para Bettina, foi como tirar o irmão das paredes do quarto onde dormia há anos: “Ele passou a me acompanhar nas mudanças cotidianas, nos acontecimentos da nossa família, nas transformações do mundo”.
O livro descreve com tamanha sensibilidade e verdade os fatos do nosso tempo que sua leitura é pura empatia, emoção, saudade e admiração. Que texto lindo e comovente, muitas vezes engraçado e de alta sensibilidade.
Outro dia participei de uma aula com a Ana Holanda, a escritora maravilhosa que, depois de trabalhar como editora da revista Vida Simples, decidiu aplicar sua energia no que chama de “escrita afetuosa”, escrevendo e, principalmente, ensinando a escrever. Um dos cursos que oferece se chama “Escrita para Momentos de Dor”. Quando soube desse curso, entendi perfeitamente o movimento da Bettina: escrever para conhecer seus sentimentos e, quem sabe, curar boa parte deles. Escrever para se transformar e transformar tudo em volta.
Cada capítulo, uma historinha, uma notícia importante, um carinho, uma saudade, uma análise sobre a humanidade. O blog era feito de histórias e memórias deles juntos, com o Fabio (o outro irmão), os seus pais ou com as outras pessoas que acompanharam a vida da família Bopp. São histórias sobre as pessoas que participaram do caminho do Ita e que tiveram que lidar com o seu estado vegetativo persistente. É como diz Belchior: “Nas paredes da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”.
Desde seu blog, que já se chamava “Pra Quando Você Acordar”, a Bettina começava cada texto com a frase: “Você não vai acreditar, Ita…”, falando diretamente com o irmão. Depois dessa frase que se repete, ela levantava um assunto que desejava discutir com o irmão e invariavelmente fechava o texto falando sobre ele, sobre a esperança de sua volta, ou mesmo chegava a falar sobre seus períodos de raiva.
Seus pais são constantemente lembrados nas notícias e pensamentos que Bettina divide com o Ita, com extremo amor. Ambos estavam vivos na tarde de 16 de setembro de 2005, quando o Itamar se sentiu mal no trabalho e foi levado para o hospital onde teve um infarto. No tempo em que era reanimado, longos 40 minutos, a falta de oxigenação o colocou em um estado de coma por 15 anos.
Bettina conta que, de alguma forma, entrou em coma com ele durante esse processo: “Terminei um namoro, parei de escrever, de encontrar amigos, de viajar. Precisava lidar com novos sentimentos que passei a viver depois do que aconteceu com o meu irmão: raiva, insegurança, medo, culpa, inveja.”
Foi no blog e no livro em homenagem ao irmão que Bettina se reencontrou e nos convida a nos emocionar com suas histórias: “Acho que uma das razões por que fiz e blog foi esta. Colocar você para andar por aí. Trazer você para junto de mim, de nós, dos outros.” Realmente, o blog da Bettina foi lido no Brasil e em mais 27 países que hoje conhecem um pouco da história do Ita. Ele saiu da cama e do berço da família e suas histórias foram para o mundo. Esse fato, em si, já trouxe um grande conforto para a Bettina.
Também a fez feliz saber que estava mudando algo na trajetória do Ita e na vida das pessoas: uma leitora contou que o livro a fez voltar a falar com a família com a qual há muito tempo tinha rompido; um grupo de brasileiros que mora fora fez uma corrente de oração para o Ita e teve até quem tenha feito uma música para ele.
Em cada texto encontramos conexões com músicas, poesias e textos de muitos autores memoráveis como o Guimarães Rosa em seu texto “A Terceira Margem Do Rio”: “Não pisou mais em chão ou capim. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nem queria saber de nós; não tinha afeto?”
“É exatamente isso, o Ita não estava em uma margem nem na outra, não descia nem subia, estava lá, no meio do rio, onde não podíamos acessá-lo”. Assim Bettina conta que nenhum texto representa melhor o coma do Ita do que “A Terceira Margem do Rio”: “Sem alegria nem cuidado, decidiu um adeus para a gente. E a canoa saiu se indo”.
Músicas que fizeram parte da história dos irmãos ou mesmo novas que Ita não conheceu dão título a cada capítulo e aparecem o tempo todo nos textos da Bettina. Cada uma tem um papel sensível e exato naquilo que a autora tem para falar. Como o título de um dos capítulos que inicia com um trecho de Adriana Calcanhoto: “Que é pra ver se você volta, que é pra ver se você vem” ou mesmo uma frase da música “Dona Cila”, da Maria Gadú, com a qual descreve a sua mãe: “O fardo pesado que leva deságua na força que tem”.
Bettina tem três filhos e escrever bem é uma qualidade de cada um deles também. Maria, Lucca e Bruna têm um texto escrito para o tio Ita no livro, igualmente emocionante, assim como seu médico e outros amigos próximos. Cada filho da Bettina conta para o tio sobre um irmão: Bruna escreve sobre o Lucca, que escreve sobre a Maria, que escreve sobre a Bruna, na esperança do tio acompanhar o amadurecimento dos sobrinhos com quem tinha forte conexão.
No texto da Bruna (Bubu), ela conta como o seu irmão Lucca se parece com o Ita quando gargalha: “É assim toda vez que minha mãe percebe você nele. Quando ele canta “Sandra”, do Gil, a plenos pulmões. Como você cantava. Em não sair de casa sem perfume. Como você fazia. Ao valorizar os bons amigos. Como você sempre valorizou. O Lucca nunca desistiu de você. Ele te mantém vivo ao lado dele em todas as vezes que corrige as pessoas quando elas falam de você no passado —você não gostava, para o Lucca você gosta. Se você ainda tem dúvida se vale a pena voltar, volta por ele?”.
Para escrever esse texto, entrevistei a Bettina, quando senti mais uma vez a empatia que me provocou o seu livro. Foi muito lindo ouvir dela mesma sobre o processo de escrever o blog e o livro. Falamos muito sobre cada pessoa da sua família. Depois de ler o livro, nos sentimos perto de cada pessoa da família.
Eu queria saber sobre todos e especialmente sobre o Ita. Perguntei como era ele acordado. Tenho a impressão de que essas almas que partem cedo têm sede de viver, têm pressa de acontecer. Bettina me respondeu que era exatamente isso: Ita queria tudo, era rápido, inconstante e intenso, como o descreve no capítulo de título “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”: “Assim como você, Ita. Que viveu intensamente cada minuto, que estendeu o quanto pode sua juventude, que escolheu aproveitar tudo ao redor, que amou e foi amado incessantemente, que fez um milhão de amigos sem distinção, que viu milhares de vezes o Sol nascer antes de ir dormir, que deixou para depois algumas coisas importantes”.
Mas com toda essa intensidade, um dia Bettina se preocupou ao conversar com o irmão-amigo. Foi o dia em que ele contou para ela que se sentia sem sonhos naquele momento. Seria esse um aviso? Uma desistência da existência? Como diz a música “Tempo perdido”, do Legião Urbana: “Temos nosso próprio tempo”.
Ita não voltou. No dia 7 de setembro de 2020 ele partiu. Sua mãe, que cultivava uma esperança sem medida e que voltou a cuidar dele como um bebê, morreu no dia 9 de manhã, menos de 48 horas depois. Ambos de pneumonia, doença que era recorrente no coma do Ita, era o que o levava para o hospital com alguma frequência. É impressionante os dois partirem ao mesmo tempo. Não para dona Maria Elvira, que tinha combinado com ele que iriam juntos. Uma história e tanto, uma mãe e tanto, um filho e tanto, um irmão, um tio, um amigo, um companheiro e tanto. Essa é a história do Ita, que a Bettina conta da forma mais linda, carinhosa e poética possível e que nos mostra que escrever é uma ferramenta maravilhosa para amenizar nossas dores e elaborar nossas perdas.
Por fim, fica aqui o meu recado após ler esse livro que encheu o meu coração de amor: “Deixemos de coisa, cuidemos da vida, se não chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida”. Obrigada, Ita, pela sua intensa existência. Obrigada, Bettina, pelo lindo e tocante texto de amor. É como disse a Maria Bopp sobre sua mãe: “Minha mãe sempre teve a habilidade de transformar o cotidiano em fábula”. Uma história para guardar no coração. O que fica para mim é um verso do Drummond citado pela própria Bettina: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”.