Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Quando se perde um parceiro da vida: o difícil e subestimado luto de irmãos.

Cynthia Almeida divide seus aprendizados e traz as perspectivas das psicólogas Luciana Mazorra e Valéria Tinoco em um capítulo do livro "Luto Por Perdas Não Legitimadas na Atualidade".
Imagem: iStock

Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL

 

“Eu perdi um filho, não posso perder minha família.”

Lembro-me de ter dito essa frase logo depois da morte do Gabriel, meu filho do meio. Era, naquele momento, meu pedido de socorro ao universo (“por favor, não me tire mais nada!”). Era, também, a forma com a qual julgava proteger meus outros dois filhos da devastação causada pela partida repentina do irmão, aos 20 anos.

Lembro-me de ter pedido ao mais velho que mantivesse uma viagem de férias que já estava programada para alguns dias depois. Eu achava que assim ele sofreria menos e sua vida seguiria o curso “normal”. A mais nova, ainda criança, não recebeu o acolhimento que merecia: não pedi ajuda à sua escola para que ela tivesse a atenção necessária naquele momento. Não oferecemos a eles um cuidado terapêutico, um lugar onde pudessem expressar sua tristeza que não fosse os braços dos pais, então imersos na própria dor. Não me culpo: fiz o que podia e acreditava ser o melhor. Mas eu estava errada.

Levei alguns anos para reformular a palavra “perda” no meu repertório emocional, e muitos outros para entender que, ao tentar preservar “a vida normal” dos meus filhos, eu tornava mais difícil o processo dos seus próprios lutos. E só muito recentemente aprendi que o luto dos irmãos está entre os mais delicados, profundos e subestimados.

Em um capítulo importante do livro “Luto Por Perdas Não Legitimadas na Atualidade” (Summus Editorial, 2020), organizado pela psicóloga Gabriela Casellato, as terapeutas Luciana Mazorra e Valéria Tinoco explicam como o luto dos irmãos é, com frequência, não reconhecido, por não ser compreendido como tão significativo como o de pais, filhos e cônjuges. “Quando morre uma criança na família, os pais são considerados enlutados primários e os irmãos por vezes não recebem o apoio necessário.”

As autoras explicam que a relação com irmãos, sejam biológicos ou não, costuma ser o vínculo afetivo mais duradouro estabelecido ao longo da vida. “O que se perde quando um irmão morre é bastante específico: um parceiro da vida inteira, o companheiro do futuro, um modelo, um parceiro, um competidor, um amigo, um protetor, um protegido. Trata-se, portanto, de uma perda em larga escala: perda do passado compartilhado e do futuro que teriam juntos.”

São diferentes as perspectivas do luto entre irmãos adultos, jovens ou criança. “Para uma criança, que ainda compreende a morte como um fenômeno temporário e reversível, e que pensa de forma egocêntrica e tende a achar que seus pensamentos e ações são capazes de provocar a morte, a morte de um irmão pode ser associada a um sentimento de culpa.”

É só a partir de 6 anos que a criança adquire o conceito de não funcionalidade da morte. Ou seja, passa entender que todos morrerão um dia, inclusive ela própria. “No entanto, ainda atribui a morte aos idosos e entende sua ocorrência como algo muito distante da sua realidade. A morte de um irmão traz à luz a dura constatação de que crianças também podem morrer, o que gera medo”, escrevem as psicólogas. Esse medo se amplifica quando quem morreu tão perto não é um idoso, é alguém como ela. É o seu irmão. Quem será o próximo? Minha mãe? Meu pai? Eu?

O jovem adulto tem uma compreensão mais elaborada, mas também se depara com a culpa e o medo. E com a necessidade de preencher uma ausência e lidar, muitas vezes, com a injusta comparação com alguém que não está mais lá e que frequentemente será idealizado.

“É comum observarmos a presença de um sentimento de culpa por ter sobrevivido e não ter podido protegê-lo. Lidar com tal sentimento pode ser bastante desafiador. De uma hora para outra, não é apenas o irmão querido que não está mais lá. Mas o mundo conhecido se foi com ele. Os filhos têm que lidar com a perda dos pais que conheciam”, escrevem Tinoco e Mazorra.

Quando penso nas minhas primeiras atitudes em relação aos meus filhos, entendo que foi esse mundo familiar que, de forma intuitiva, tentei preservar. Não funciona assim. A família, na verdade, nunca mais será a mesma. E isso não significa que será pior ou triste para sempre. Será outra. Haverá uma profunda transformação em sua estrutura e cada um vai procurar um novo lugar nesse “novo normal”.

Ao longo desse processo, os pais geralmente contam com apoio social e afetivo de uma rede de cuidado que será fundamental. Os irmãos, nem tanto. Sentem-se na obrigação de amparar a dor maior dos pais e não dispõem de ferramentas ou estrutura para fazê-lo. Não sabem, muitas vezes, nem mesmo lidar com seus próprios sentimentos.

Os pais enlutados talvez não sejam, no momento crítico da dor, o melhor amparo para a família e isso é compreensível e esperado. Mas o mundo à volta pode acolher mais. A rede de proteção, os amigos, professores, colegas e a sociedade de forma geral deveriam ter um olhar muito mais atento e amoroso para os irmãos.