Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

‘Lição de vida para quem fica’: por que falar sobre a morte é importante

Sandra Soares divide com a gente histórias e reflexões do "Vivre Avec nos Morts" (Viver Com Nossos Mortos), da filósofa Delphine Horvilleur.
Imagem: iStock

Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL

 

“Eu preciso saber para onde foi Isaac… Não sei em que direção olhar para poder encontrá-lo. Papai e mamãe não conseguem se decidir, dizem que amanhã vamos enterrá-lo e depois falam que ele foi para o céu. Eu não compreendo: Devo olhar para cima ou para baixo?”

O encontro com uma criança de oito anos que acabara de perder o irmão é uma das histórias narradas no livro “Vivre Avec nos Morts” (Viver Com Nossos Mortos), da filósofa Delphine Horvilleur, terceira mulher a ser nomeada rabina em seu país, a França.

Como uma de suas principais atividades é acompanhar famílias enlutadas e conduzir cerimônias fúnebres, Delphine costuma ouvir relatos que dão conta de toda a confusão de sentimentos que a morte pode causar —não só entre crianças como em adultos. Encontrar as palavras e os gestos diante da dor da perda, dando “voz aos silêncios”, não é tarefa fácil nem mesmo para quem, como ela, está familiarizado com situações de luto.

Nas palavras de Delphine, seu papel é o de uma contadora de histórias que busca “transformar cada morte em lição de vida para aqueles que ficam”. Ela afirma que as pessoas frequentemente não se apropriam daquilo que sabem. “Meu trabalho é acompanhar os enlutados não para revelar algo que não soubessem, mas para traduzir o que me contam de forma que eles próprios possam se ouvir.”

Delphine Horvilleur está convencida de que a linguagem é a chave de acesso a uma força reconfortante particularmente poderosa —a mesma certeza que motivou a criação do projeto “Vamos Falar Sobre o Luto?”, que hoje mantém essa coluna no VivaBem. A seguir, destacamos trechos de depoimentos da rabina e filósofa que testemunham o poder transformador da fala:

  • “É próprio da morte que ela não possa ser contada. O que pode ser contado é a vida. A mais bela homenagem que podemos fazer a quem partiu é contar sua história, conversar sobre ela, escolhendo a vida de novo e de novo, mesmo quando ela já não existe mais. Na tradição judaica, por exemplo, o princípio de investir na vida é ilustrado pela opção de não embelezar a morte com mausoléus ou túmulos floridos e sim de fazer uma doação à ciência ou realizar uma obra em homenagem aos mortos.”
  • “Toda hora é boa para conversar com nossos fantasmas! Mas é verdade que os tempos de crise os tornam mais falantes e nós os ouvimos melhor. Claro, isso é uma metáfora. Não estou falando dos fantasmas vestidos de lençóis brancos e sim de todos os resíduos do passado, de nossas histórias individuais passadas de geração em geração… Nos momentos de crise é como se portas estivessem se abrindo entre dois mundos. A questão é: o que fazemos com isso? Que diálogo decidimos travar com o passado?”
  • “Ao longo de nossa existência, sem que percebamos, vida e morte continuamente dão as mãos e dançam. Há uma definição que gosto muito, do biólogo Henri Atlan: ‘A vida é o conjunto de funções capazes de usar a morte’. A morte deve fazer seu trabalho continuadamente –que as células morram é condição para a nossa sobrevivência! As células que se recusam a morrer ganham uma vitalidade quase eterna e tornam-se tumores. Vejam que curioso: o excesso de vida nos condena, a morte inibida nos é fatal. Como sociedade, esconder a morte, separá-la de nós, é um grande erro. Devemos aprender a pensá-la de forma diferente, a deixá-la ganhar expressão, perceber como ela coexiste com as forças de vida dentro de nós.”
  • “Explorar a morte me forçou a enfrentar minhas próprias falhas. O exercício não é fácil: como saber quando vou longe demais no que revelo sobre os outros ou sobre mim mesmo? Ao mesmo tempo, não há escolha: você não pode falar sobre luto de forma justa sem expor sua própria fragilidade, você não consola alguém expondo sua integridade. A vulnerabilidade é essencial.”
  • “Muitas vezes o desaparecimento súbito sequestra toda uma existência que não deve, no entanto, ser reduzida ao seu fim. Quando as pessoas morrem, nunca é sobre a sua tragédia que devemos falar, mas sobre a vida e a forma como foram celebradas.”
  • “É possível aprender a morrer? Sim, com a condição de não recusar o medo de, como Moisés, estar pronto para se virar para trás para ver o futuro. O futuro não está à nossa frente, mas atrás, nos rastros de nossos passos no chão de uma montanha que acabamos de escalar, rastros em que aqueles que nos seguem e sobrevivem lerão o que ainda não nos foi possível ver lá.”
  • “A morte de um filho condena a um exílio numa terra desconhecida. Nenhuma das palavras que você conhece pode descrever o que se sente. Como todo imigrante, é preciso descobrir uma nova língua em que irá balbuciar.”