Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Escrever o luto: oficina criativa

Sandra Soares recomenda os cursos de Carolina Junqueira, pós-doutora pela USP que investiga a relação entre os enlutados e seus mortos
Carolina Junqueira em: Autorretrato em memorial, Berlim-Steglitz, 2018

Fomos apresentadas por uma amiga em comum. Carol (Carolina Junqueira) tinha acabado de chegar a Paris para uma temporada de pesquisa de campo pela Europa (a cidade seria, a cada viagem, seu ponto de partida e de retorno). Naquele momento, ela trabalhava num pós-doutorado em antropologia, pela USP (Universidade de São Paulo), batizado “O corpo, a lacuna, o traço: a invenção de uma presença em monumentos e memoriais aos mortos”. Já faz tempo que Carol se interessa pelo que fica de quem foi. Nas palavras dela: “procuro os restos dos mortos na paisagem; cidades, campos, cemitérios, florestas”. Seu doutorado teve como objeto de pesquisa fotografias de família em que mortos e vivos aparecem juntos. Ela diz ter compreendido, com este trabalho, que o luto é uma condição que permite ao enlutado manter o vínculo com a pessoa que partiu. Não se trata de superação, mas de criação; da invenção de um novo jeito de relacionar-se.

Ao longo dos meses em que Carol esteve em Paris, nos encontramos em diferentes cafés e tivemos longas conversas que quase sempre nos levavam a um mesmo tema: o luto. Me lembro de quando ela voltou de Sarajevo e me mostrou fotografias de muros e de pedaços de chão ainda marcados pelas balas e morteiros disparados cerca de 30 anos antes, durante a guerra da Bósnia (1992-1995). Uma das imagens mostrava um buraco de bala transformado em flor – o buraco era o miolo e aparecia cercado por pétalas que alguém desenhou, talvez numa tentativa de apagar o horror. Outra foto mostrava uma folhagem verde abrindo espaço pelos escombros, surgindo do cimento para mostrar que vida e morte andam sempre juntas.

Quando Carol voltou para o Brasil, me presenteou com um cartão postal ilustrado pela pintura Chop Suey, de 1929, de Edward Hopper. Nela, duas mulheres conversam em torno de xicaras, numa mesa de um café qualquer, sentadas próximas à janela que permite ver a rua, como nós duas sempre preferimos. Guardo esse cartão até hoje, dependurado na minha estante de livros. Ele me emociona pela simplicidade e pela surpresa de encontrar a mim mesma, e a ela, na imagem. Me deparar com ele me faz lembrar dessa amiga que é uma das pessoas mais sensíveis, lúcidas e sábias que já conheci.

Desde a pandemia, Carol vive numa pequena cidade da Bahia, numa casinha perto do mar, de onde realiza, dentre outras atividades, uma série de oficinas de processos criativos em torno do luto. Ela desligou-se do meio acadêmico, mas segue pesquisando de forma independente – e dando aulas também! Frequentemente recomendo os cursos dela aos amigos. E cá estou para recomendá-los a você, leitor.

Funciona assim: são dois encontros a cada módulo, organizados em torno da leitura, pelos participantes, de uma obra literária em torno do luto. Cada livro e autor configuram um módulo independente dos demais. Joan Didion, Annie Ernaux, Han Kang e Paul Auster são alguns dos autores já abordados. No primeiro encontro, Carolina comenta a obra. Cada participante é então convidado a escrever um texto sobre a sua experiencia de luto. Os textos são enviados a ela, lidos em voz alta no encontro seguinte e comentados por Carol e pelos colegas. Nada é obrigatório. Quem não tiver vontade de escrever, simplesmente não escreve.

Participei do módulo sobre Annie Ernaux. No momento da leitura dos trabalhos individuais, me emocionei não apenas com as histórias, mas com o jeito de cada um de contá-las. E fiquei impressionada com a facilidade e a fluidez da conexão que se estabeleceu entre as pessoas, à distância, cada um em sua janelinha virtual. Parecia uma sessão de terapia de grupo. Saí do encontro como quem sai de uma sessão de análise.

Neste texto que você lê, acabei falando menos sobre a oficina e mais sobre a Carol. Foi de propósito; afinal, o melhor do curso é ela (vai lá para ver como eu tenho razão!) Pelo mesmo motivo, chego ao fim passando a palavra – reproduzindo aqui um texto que Carol escreveu para o seu site.

Foi nos primeiros meses do ano de 1986 que eu soube que existia a morte. Meu pai me levara ao observatório de um amigo, fora da cidade, para ver passar o cometa Halley. Eu tinha 5 anos. Não foi tanto pela visão do cometa com seu rabo de fogo no meio da noite, ou por uma nova concepção de universo que talvez tivesse passado a existir na menina diante do imenso telescópio. Ainda me lembro de algumas sensações desse passeio: atravessar a cidade de carro; pegar estrada no meio da noite; estar excitada com o programa noturno; a imagem do pequeno observatório num descampado escuro; olhar o céu. Lembro-me também de ter ganho na época um livro que contava a história do cometa Halley. Mas me lembro, sobretudo, de ter sido esse cometa, em 1986, o que me trouxe pela primeira vez a ideia de fim. Meu pai me contara que o cometa passaria novamente na terra quando eu fosse velhinha. E me disse que ele e minha mãe não o veriam mais. O cometa se transformou, de imediato, na prova material da morte para mim. Dali em diante, uma sucessão de medos e pensamentos recorrentes povoaram meu imaginário, com a ideia da morte cada vez mais viva nele. Desde pequena perguntava: o que resta?, e, mais desesperadamente: vamos nos encontrar depois de termos morrido? Em uma madrugada em que se sentia triste e cansado, meu pai me respondeu: não sei.

Vinte anos depois, ele morreu. Era já madrugada quando minha família e eu atravessamos uma longa estrada rumo à pequena cidade onde ele seria velado e enterrado. O céu estava plenamente iluminado com uma lua cheia e leitosa, mal se viam as estrelas, mas havia a delicadeza das frágeis sombras das árvores no asfalto da estrada.

Meses depois, arrumando os armários e gavetas do meu pai, encontrei a fotografia do cometa Halley. Na frente, o cometa desce pelo céu, atravessando seu pequeno recorte de universo, e quase escapa com seu rabo de fogo pela margem de baixo da imagem. No verso, as inscrições feitas pelo fotógrafo, o amigo do meu pai, com dados sobre o cometa, o tempo de exposição e outros detalhes técnicos. Em 20 de março de 1986, durante 8 minutos, uma imagem se fez, portando para sempre o corpo do cometa, o corpo da menina pequena e o corpo perdido do pai.