Inspiração - Belas Histórias
“Ninguém morre sozinho – e ninguém vive também“

“Às vezes, a gente passa uma vida inteira reproduzindo coisas que dizem pra gente, sem parar pra pensar nelas de fato. Um clássico: ‘todo mundo nasce e morre sozinho’. O tipo de frase usada para firmar, de algum modo, uma certa ideia de independência, de solitude, de responsabilização pelos próprios passos. Mas, que engano! Toda vez que alguém nasce, no mínimo, uma mãe nasce junto. Provavelmente, um pai. Talvez, irmãos, irmãs, tios, avós. Pessoas que serão definitivas na formação daquele outro ser, inclusive, nos ditados populares que ele crescerá ouvindo, e talvez, acreditando.
Da mesma forma, quando morre alguém, muitas pessoas falecem ali, ainda que não sejam literalmente enterradas, ou cremadas. Se morre um pai, morre também um filho, o filho visto pelos olhos daquele pai, com sorte, um ser adorado. Se morre um marido, morre para sempre aquela mulher, muitas vezes idealizada, muitas vezes mais legal do que a própria imagem dela refletida no espelho, que agora, inclusive, ficará quebrado (sete anos de azar?).
Foi assim, há quase 14, que me vi diante do luto pela morte súbita do meu marido, mas também, passo a passo, dia a dia, diante do luto pelas mortes de muitas partes da minha identidade, do que eu acreditava ser. De 30 para 31 de dezembro de 2011 eu perdi, ou melhor, a morte roubou, minha faceta esposa, parceira, amiga, companheira, aprendiz e até um pouco filha e discípula – coisas que acontecem quando, além do amor, existe muita admiração envolvida. Eu fiquei enlutada não só pelo meu marido, mas também pelo que eu era, pelo que seria se tudo continuasse daquele jeito, se não tivesse uma pegadinha cósmica no script.
O resultado é que eu tive que aprender a renascer, a me autoparir, para não morrer de vez – e passei perto disso, algumas vezes. Tive que resgatar a menina que fui, antes da Renata que era. Fazer as pazes com outros fantasmas, entender que tipo de ovo era o meu favorito, que músicas eu ouviria se estivesse sozinha, porque agora estava, que educação daria aos meus filhos se não houvesse nenhuma negociação envolvida, nenhuma concessão a ser feita. Tive até que escrever um livro.
E aprendi que toda essa recriação só é possível em parte. Porque, veja, perdi o Daniel para a morte, mas não para a vida. Ainda que ele não esteja mais aqui, de corpo, voz, piadas, ele tem sido uma presença constante – às vezes, uma couraça, quando visto sua jaqueta de couro e me muno da sua coragem, cabeça erguida para a vida; às vezes, um interlocutor, quando preciso conversar e sei que só ele teria algumas respostas; às vezes, ou melhor, muitas vezes, um amigo, para quem conto as novidades, discuto política (que dias!), peço um conselho, uma saída. Uma testemunha da minha existência na Terra.
Há dez anos disse aqui, neste mesmo espaço, que ele vive em mim (Ubuntu) e, hoje, acrescento, que eu morro nele. Sim, morreu a Renata que ele e eu conhecíamos até 2011, a Renata do Daniel. Nasceu a Renata com o Daniel, que carrega dentro dela resquícios do agora ex-marido, mas para sempre pai dos meus filhos, amigo, parceiro. Partners in crime (almas gêmeas?).
E quer saber? Se isso não é vencer a morte, coisa que ainda me parece impossível, é chegar bem perto de uma pequena vitória. É dar uma leve trapaceada para manter vivo aqueles que amamos e seguiremos amando a despeito das fatalidades. A despeito de, como já disse Rosa Montero, a rídicula ideia de nunca mais nos vermos.”

Trecho do livro Ninguém morre sozinho, Gema, 2025:
“Não sei se você já parou para pensar nisso, ou mesmo se teve de carregar um corpo, caso não trabalhe em uma funerária ou em um cemitério. Mas, um corpo morto, vou te contar, é sempre um corpo pesado, não importa quantos quilos tenha, o gênero, a idade. No começo, eu achava que o peso correspondia ao tamanho do morto menos a alma da pessoa sem vida e, portanto, sem vontade – na exatidão da palavra, sem possibilidade – de se levantar, quiçá de boiar, leve. Um corpo do peso de um cansaço sem volta. Com a minha morte, porém, percebi que o peso de um morto não é a exatidão da balança somada à falta de ação, ou inércia, não é apenas o peso anterior somado ao inchaço provocado pela proliferação de bactérias dando os últimos gritos de vida antes de também partir, ficar sem casa, sem hospedeiro. É a multiplicação das vidas que deixam de existir ali, no momento em que a pupila engole os olhos, e tudo o que resta é escuridão.
Não sei se você já parou para pensar, mas um corpo morto é sempre enterrado. Ou cremado. A não ser quando é congelado por alguém que acha que pode ressuscitar, feito Jesus Cristo, ou que vai para a pesquisa científica e fica para sempre imóvel, bonito no formol. Um corpo em luto, por sua vez, é um corpo em permanente decomposição. Pouco a pouco perde o brilho, o tônus, a fome, a capacidade de ouvir, a vontade de falar, de querer se reproduzir, de fazer sexo. De vida.

Um corpo morto repousa, suporta a vigília. Se a gente olhar demais, acha até que ele encontrou alguma paz. Mas um corpo em luto raramente encontra descanso, sono. Muito menos sonho. Um corpo em luto vive em estado presente-permanente de pesadelo, principalmente quando abre os olhos.
Um corpo em luto quer acordar em outro corpo, ou dormir para sempre, e não ter de pensar em quem morreu além dele. Nunca sabe o que fazer. E acha que, quando faz, fez de menos.
Um corpo em luto vive em dívida com todos. Principalmente com ele mesmo.”