Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Entre a perda e o recomeço: a vida depois do suicídio de alguém amado

Dez anos depois do suicídio do marido, a psicóloga Luciana Rocha fala sobre o seu aprendizado sobre o tema, as contradições do Setembro Amarelo e o encontro de um novo amor
Luciana e o novo marido, Luís Moraes: abertura para um novo amor

Na primeira vez que entrevistei a psicóloga mineira Luciana Rocha, há 7 anos, seu marido, Marden, havia morrido há três e ela já mergulhara nos estudos do suicídio, tema que mudou sua vida e o rumo do seu processo de luto. Na época, ela disse uma frase que deu titulo ao post aqui publicado e, mais tarde, ao livro que lançaria em 2022: O suicida não é covarde nem herói (“Nem covarde, nem herói – Amor e recomeço diante de uma perda por suicídio”, Editora Gulliver).

A afirmação joga luz sobre um dos muitos mitos em torno do assunto e ajuda sobreviventes do suicídio de alguém amado a vencer o tabu do silêncio e entender melhor o que leva alguém a esse gesto extremo. O suicídio não é um ato de fraqueza de quem não tem coragem para enfrentar seus problemas, nem tão pouco é um gesto de bravura de quem prefere perder a vida a abrir mão de seus valores. O suicídio não cabe em apenas uma definição ou explicação, mas tem causas multifatoriais.

Nem covardes, nem heróis, as pessoas que morrem por suicídio são seres humanos que, apesar do desfecho dramático auto-provocado, tem histórias e caminhos singulares e devem ser lembrados pelo que foram em vida, e não reduzidos ao seu fim.

Aos 51 anos, Luciana, que se tornou uma suicidologista respeitada, mãe de dois filhos, hoje com 20 e 15 anos, direcionou sua vida para a busca do conhecimento e da felicidade e não da culpa, muito menos da raiva de quem partiu. Em julho deste ano, ela se casou novamente, com o fotógrafo e designer Luís Moraes, também pai de dois filhos adolescentes. Com a casa e a vida ampliada em todos os sentidos, ela nos deu uma nova entrevista em que faz um balanço da vivência e aprendizado da última década.

Como você resumiria o que viveu e aprendeu desde a morte do seu marido, por suicídio, há 10 anos?
Eu diria que foi uma década de reconhecimento, de mim mesma e do novo mundo que se apresentava. Quando a gente perde alguém amado, passa por um período de não entender o que está acontecendo e de não ter ideia de como será a vida dali em diante. Eu acho que fiz uma escolha muito lúcida que foi a de, primeiro, decidir seguir a vida, e segundo, estudar o suicídio e poder trabalhar com isso. Atendo no consultório pessoas enlutadas, principalmente por suicídio, e hoje sinto que eu tenho um lugar de fala diferenciado, em que os pacientes se sentem muito compreendidos e representados. Tenho a minha experiência pessoal também e o fato de eu estar inserida tanto na prática quanto na teoria me possibilita uma visão mais ampla.

Luciana e Marden: 10 anos desde a perda

Como você enxerga hoje a perda repentina do seu marido?
Eu não mudei a imagem que tinha do Marden quando ele morreu, e nem hoje, 10 anos depois. Para mim, ele continua sendo a mesma pessoa que eu sempre amei, e acho que isso foi fundamental para que eu não afundasse em um buraco negro de dor e pudesse ter o distanciamento necessário para estudar esse tema. Quando alguém me procura porque está lidando com alguém próximo que sinaliza querer acabar com a própria vida ou que está ela mesma com ideações suicidas, não subestimo essa realidade. Faço questão de falar muito abertamente sobre os riscos. Eu gostaria de ter sido alertada por alguém. Nunca ninguém me falou nada em relação ao meu marido e penso que talvez ele pudesse ter sido ajudado. A gente nunca vai saber e eu também não fico pensando nisso, mas hoje, conhecendo o assunto como conheço, vejo que o psiquiatra e psicóloga que ele frequentava entendiam pouco do tema. Quando percebemos que um paciente está em risco devemos, sim, procurar a família, orientá-la e pensar em estratégias protetoras. Isso não é quebra de ética ou sigilo.

O que você aprendeu especificamente sobre suicídio nesta última década?
Eu percebo cada vez mais que o tema suicídio é colocado numa caixinha única, num certo padrão, e não é bem assim. As pessoas falam que o suicídio é o pior tipo de morte e eu discordo totalmente. Acho que é muito difícil, mas tem perdas igualmente difíceis ou até mais desafiadoras. A forma como cada um reage a uma perda vai depender muito dos vínculos, da relação que foi construída com a pessoa e das suas crenças. O processo de luto de um sobrevivente do suicídio também não obedece um roteiro único. No meu caso, a vida que vivi com o Marden foi muito boa, foi maravilhosa, então para mim isso é o que conta. A gente não deve colocar tanta energia no desfecho. As pessoas dizem que quem perde alguém para o suicídio vai obrigatoriamente sentir culpa e raiva, e isso nem sempre é verdade. Eu, desde o início, não senti nenhum dos dois. Quando eu comecei a estudar e ouvir que todo sobrevivente teria esses sentimentos, percebi claramente que havia um estereótipo para os enlutados por suicídio que também é falho. Hoje, no meu consultório, vejo muitos pacientes que também não se sentem assim. Não sentiram culpa e não estão estagnados na busca dos porquês. Não acredito nessa sequência obrigatória: ter que se culpar, ter que querer saber o motivo, como se fosse um roteiro pré-estabelecido. Não é um padrão.

Como você avalia seu luto, 10 anos depois?
O luto e a dor sempre vão existir. Eu ainda sofro, claro,10 anos depois. Adoraria que meus filhos tivessem o pai aqui. Mas a gente vai refazendo a vida para dar espaço para as coisas boas . Não dá para a gente habitar na dor . Mas não é fácil. Às vezes eu acho que não estou dando conta. Tem horas que eu penso que é muita coisa. A vida não parou. Então é claro que além da minha perda, muita coisa aconteceu depois. É muito difícil criar dois filhos sozinha, há uma sobrecarga emocional, física, financeira.

Você contou com uma rede de apoio para lidar com sua perda?
Na época em que o Marden morreu, eu tive sim uma rede de apoio muito boa. Me ajudou demais. Mas sinto que hoje, 10 anos depois, essa rede diminuiu muito. Após a morte dele, eu perdi a minha sogra, meu sogro e também meu pai em menos de 2 anos. A família se tornou menor. Os filhos, que eram pequenos na época, davam muito trabalho, mas também era mais fácil mantê-los por perto quando crianças. Hoje já é mais difícil, eles têm suas individualidades e independências. É uma nova configuração, desafiadora.

Quando decidiu escrever sua história?
Pouco tempo após a morte do Marden eu decidi que escreveria um livro para honrar a sua vida. Mas eu preferi estudar o tema antes, me especializar, para que eu pudesse construir uma narrativa também embasada numa teoria que sustentasse a minha fala. Quando veio a pandemia, senti que era o momento ideal.

O livro de Luciana, uma década depois da perda

Em que momento você decidiu se abrir para um novo amor?
Dois meses após o lançamento do meu livro, em agosto de 2022, eu senti que gostaria de investir em um novo relacionamento. Até comuniquei aos meus filhos que eu iria namorar. Foi meio que uma decisão mesmo. Me abri para isso. Ainda não sabia com quem, mas sabia o que eu queria. Minha irmã inclusive me lembrou ,outro dia, de uma coisa que eu mesma tinha esquecido. No dia seguinte da morte do Marden, meu filho, que tinha então 5 anos, me perguntou se eu ia me casar de novo. E eu respondi que eu tinha sido tão feliz com o pai deles que, se eu conhecesse alguém e me apaixonasse de novo, eu iria sim, casar de novo.

Como foi seu encontro com o Luís?
Eu o conheci através de uma amiga e, logo no nosso segundo encontro, ele me disse que tinha lido o meu livro e que tinha gostado muito. Me deu uma alegria enorme ele já conhecer minha história e minha bagagem e ficar sabendo, logo de cara, como eu amei o Marden e que era importante para mim honrar essa história. E que um amor não exclui outro, e nem por isso me impediria de me apaixonar por outra pessoa. O Luís é muito amoroso e cuidadoso com todos os meus sentimentos, os bons e os ruins, com o meu luto e com a cicatriz que carrego dentro de mim.

O fato de você ter escrito um livro sobre a sua história ajudou a conviver com o luto?
Os feedbacks que eu recebo de pessoas que leram o livro ou que me encontram em palestras são muito significantes. Eu me sinto acolhida e ao mesmo tempo privilegiada por poder acolher os outros. Quando eu comecei a falar e abri a minha história, poucas pessoas falavam sobre isso. Eu vi que é importante falar sobre o que eu passei e sobre seguir apesar da perda, porque muita gente acha que a vida vai acabar ali. Não precisa e não deve ser assim.

Como o tempo muda o processo do luto?
O tempo sozinho não resolve nada e ainda impõe um cansaço no luto. Vejo isso em mim e no consultório. No início do processo do luto, diferentemente do que as pessoas pensam, temos mais disposição e energia para lidar com os sentimentos e as coisas que a vida exige. Com um tempo, vai dando um cansaço e a gente vai se sentindo muito solitária. Depois de 10 anos, por exemplo, ninguém pensa que você continua sofrendo .

A conscientização que o setembro amarelo promove ajudou?
Hoje as pessoas se permitem falar mais sobre o luto e, consequentemente, de mortes por suicídio. Quando o Marden morreu, nem se escutava falar em Setembro Amarelo. Mas tenho sentimentos contraditórios em relação a essa campanha. Por um lado acho muito bom que a gente fale e tente diminuir o tabu que envolve o suicídio. Por outro, principalmente nos nossos tempos de redes sociais, acho que o assunto “viralizou” de forma mais rasa do que deveria. As pessoas se sentem na obrigação de se engajar e postar qualquer coisa e repetem informações que não são embasadas e que podem mais prejudicar do que ajudar. Uma das afirmações mais absurdas que se espalharam no âmbito do Setembro Amarelo é a de que 90% dos suicídios poderiam ser evitados. Essa estatística sem qualquer comprovação científica pode ser um gatilho cruel para um sobrevivente que passa a acreditar que poderia ter impedido o gesto da pessoa querida.

De onde vem esse mito dos 90%?
Esse dado surgiu de um artigo científico que supostamente mostrava que 90% das pessoas que tiravam a própria vida sofriam de algum tipo de doença mental. Sem entrar no mérito da constatação, veio daí a ilação de que qualquer doença mental pode ser diagnosticada, tratada e curada (o que também não é verdade, até mesmo porque a grande maioria não tem nem acesso ao serviço de saúde mental para serem diagnosticadas). Por esse raciocínio, 90% das pessoas com algum diagnóstico de doença mental iriam se curar e evitar o suicídio. O suicídio é uma coisa muito mais complexa, multifatorial, cada vez mais estudos sérios mostram os múltiplos fatores que o impactam, sendo eles genéticos, culturais, de gênero, de ambiente social e até a situação política do país impacta.

O que você diria hoje a um enlutado sobrevivente de suicídio de alguém amado?
Eu diria para, em primeiro lugar, não colocar sua energia em buscar um motivo ou um culpado. As respostas que um sobrevivente busca estão dentro de cada um, por isso o luto é único. A minha história é só minha. É triste, e naturalmente eu não gostaria de ter passado por ela. Estou com 51 anos e busco fazer da minha vida uma história bonita. Agora não dá para falar isso para qualquer pessoa e imaginar que isso vá aliviar a sua dor. O que eu costumo dizer para um sobrevivente é que ele tente não se apegar ao desfecho, que é paralisante, mas à vida que teve com a pessoa que se foi e à vida que pode ser construída depois que essa pessoa se foi. Acho também que uma coisa que ajuda muito no luto por suicídio é a psicoeducação. É você entender melhor sobre suicídio. Seu conhecimento não vai dar todas as respostas, mas vai colocá-lo num lugar mais confortável, menos solitário.