Inspiração - A gente indica, Como eu me sinto
Ela passou rapidinho para deixar um beijinho
Como uma criança sente a dor da morte do irmão que não chegou a ter? Como é viver um luto tão subestimado como o dos irmãos por uma perda igualmente desvalorizada que é a gestacional? Tudo nesse quadro difícil colabora para se deixe de lado a tristeza do irmão ou irmãos que, assim como os pais , vêem a expectativa do novo bebê se frustrar. De repente, a criança, que já sentia alegria, ciúmes, excitação, tem que entender que não há mais um irmão a caminho. Não existem mais os planos de brincar (ou brigar), não há mais berço, divisão do espaço, dos vovôs, dos brinquedos. Só um vazio incompreensível e as lágrimas dos adultos mais importantes de sua vida.
Ao sofrer a perda da filha, Lila, com 14 semanas de gestação, em meio ao cenário solitário da pandemia, em 2020, a jornalista e escritora Jules de Faria sentiu a maior dor da sua vida. “Tudo tinha morrido dentro de mim. Não conseguia apreciar o sol, o céu, as estrelas. Nada disso fazia sentido mais porque o coração da Lila tinha parado de bater. Quis logo contar para o Jonas, então com 2 aninhos. Foi muito difícil ser a mãe e a mensageira dessa notícia para o meu filho”.
Hoje, cinco anos depois da breve passagem da Lila, a família de Jules, o marido, Rafa e o filho mais velho, Jonas, de 7, tem um novo membro, Leo, de quatro anos, uma casa nova em nova cidade e uma história de amor que ela transformou em um lindo livro para crianças (e fundamental para adultos também!). Ela Passou rapidinho para deixar um beijinho (Editora Quelônio, R$66,00), com ilustrações de Bruna Ximenes, dá a palavra para o irmãozinho. E conta como ele viveu a alegria do bebê na barriga da mamãe e a melancolia e confusão de sentimentos do luto da sua partida. “Ela acabou, mamãe?” As perguntas e os mistérios que suas respostas implicam, a vontade de ficar quietinho com o coração apertado, ou bravo, ou assustado com uma experiência precoce de morte, difícil de compreender, são os fios de uma obra tão delicada e amorosa quanto necessária.
Não há, como Jules mostra no livro, super-herói que dê conta do turbilhão de emoções dessa criança que nem sabe explicar a saudade de uma irmã que não chegou a conhecer. Mas tudo que o livro aborda sob o olhar infantil colabora para o processo de compreensão da perda e , ao final, da criação de memórias bonitas. “Ela ainda está com gente de alguma maneira, mamãe?”pergunta o irmãozinho. “Ela está em todas as lembranças que criamos. Isso graças ao amor que sentimos uns pelos outros. E ainda temos o gosto pela vida, que insistimos em sentir.”
Ela Passou rapidinho para deixar um beijinho é um livro muito importante para nos aproximarmos do sentimento das crianças que testemunham a perda e também para dar lugar a esse luto tão desvalorizado para os pais. Conversei com Jules sobre a sua experiência da perda gestacional, o processo do luto da família e o imenso legado de amor que o bebê breve deixou.


O que ficou na sua memória sobre o dia da perda da Lila?
Foi muito triste. Eu estava sozinha, sem o meu marido, sem o Jonas, sem meus pais.
Era setembro de 2020, plena pandemia. Minha rua estava coberta de Ipês amarelos, o início da primavera. Eu escovava os dentes e senti o sangue escorrer. Fiquei muito aflita e, por indicação da médica, fui ao pronto-socorro. Tive que ir sozinha porque o meu marido, Rafa, ficou com o Jonas, então com dois aninhos. Estava com muito medo quando entrei na sala de ultrassom. Um médico muito jovem passava o transdutor de um lado para outro, bem sério. Eu sabia que não estava escutando nada. Mas mesmo assim, pedi: me fala, você não está escutando o coraçãozinho? Ele confirmou.. Aconteceu o que se denomina “aborto retido” , demorou uma semana para eu descobrir que o coração da minha filha tinha parado de bater.
Eu quis contar para o Jonas imediatamente. É muito difícil ser a mãe e a mensageira desse luto. Ter que contar para os meus pais, os avós sentiram muito. Toda nossa família tem muitos meninos e aguardavam com muita alegria a chegada de uma menina.
Como foi o desfecho da gravidez?
Liguei em seguida para a minha obstetra que pediu para eu ir para casa dormir e voltar ao consultório de manhã. E eu dormi uma última noite com ela na minha barriga. A médica me disse que por já ser grande, 14 semanas, precisaria fazer um parto. Eu gritei, urrei como uma louca. Não queria passar pelo trabalho de parto de jeito nenhum, mas no final foi muito importante ter feito o parto, ela ter saído de mim, eu tê-la segurado na minha mão. Tão pequenininha que cabia na minha mão. Tirei uma foto que mostrei para pouquíssimas pessoas, meus pais, uma amiga. Os hormônios do parto me deixaram eufórica, mesmo com a minha filha ali, morta na minha mão, eu estava feliz.
Como foi engravidar novamente?
A chegada do Leo foi a prova de que a vida persevera, mas , ao mesmo tempo, eu quase me sentia traindo a Lila . Eu nunca quis que o Leo sentisse que ele veio só porque a Lila não pode vir. Foi super complicado entender que cada um tinha o seu espaço. E que a Lila deixou um legado gigante na nossa vida
Você ficou com medo de perder o segundo bebê?
Sim, tive uma gravidez difícil, não no sentido de risco, mas de me sentir mal. Eu pedi muito aos céus, a Deus, à natureza, a quem eu pudesse pedir para que ele pudesse vir, para que pudesse me curar e ele de fato me curou. Eu me curei.
Tenho até vergonha de contar isso, mas antes de ser mãe, eu não compreendia a dimensão dessa perda. Podia ser um micro-feto, um amontoado de células, mas nasce ali uma maternidade, uma paternidade, nascem avós, irmãos. Nascem sonhos, futuros…
E quando isso deixa de existir dói muito, e é um luto muito real e claramente desprezado, desvalorizado (até por mim, antes) É triste pensar que muitas vezes a gente precisa passar por coisas tão difíceis para compreender.
O que você ouve durante o seu luto que ajuda ou não ajuda?
Me falaram coisas boas e ruins. Não sei se dá para fazer uma lista sobre o que ajuda ou não. Agora, com um certo distanciamento, eu vejo que todo mundo estava tentando ajudar e isso já é tão válido. Queriam ajudar e sou grata por isso. Melhor do que não falar, melhor do que ignorar. Eu tive a sorte de uma rede muito solidária que me ajudou a enfrentar uma situação muito triste: depois da perda eu sentia muita vergonha da barriga que não existia mais, não queria ver ninguém. Eu me sentia muito culpada, achava que era minha culpa de ter perdido o bebê, de não ter sido uma boa mãe. Eu comi errado? Tomei remédio? Pulei muito? Nada disso tinha sentido. A vida tem mistérios e a gente tem que aceitar.
O que ficou com vocês depois da passagem da Lila?
O meu marido, Rafa, fala sempre que o que a Lila trouxe para nossa vida um legado imensurável. Depois que ela se foi eu entendi que não queria mais ser workaholic, que eu queria morar na praia. Eu fiquei uma pessoa muito mais alegre, entendedora da natureza e do mundo. E também pude conhecer o Leo, que é meu terceiro filho, o segundo aqui no mundo, uma das melhores pessoas no mundo, meus filhos. Vivo com essa gratidão de tudo o que ela me ensinou.
Tem uma frase da Bel Hooks que me acompanha desde então.
“To be loving is to be open to grief, to be touched by sorrow, even sorrow that is unending” (Amar é estar aberto ao luto, a ser tocado pela tristeza, até pela tristeza que nunca acaba).