Inspiração - Belas Histórias, Reflexões
Já dá pra pensar em viver e não só em sobreviver
A primeira vez que conversei com o publicitário e designer gaúcho Ronaldo Baker, logo que lançamos o site, há um ano, foi uma entrevista difícil e comovente. Nosso diálogo foi entremeado por pausas silenciosas e suas frases muitas vezes interrompidas por suas lágrimas. Ele já havia iniciado o seu blog do Pai Viúvo , onde publicava os desenhos das cenas prosaicas da rotina da nova vida com a filha Rafaela, então com 5 anos. Havia se inspirado na própria criança, que lhe contara que a saudade da mamãe doía menos quando ela desenhava.
Muitos meses e desenhos depois, voltamos a conversar. A nossa colega de site Gisela Adissi acabara de publicar o post Homem Não Chora? sobre a maior dificuldade que os homens tem, em relação às mulheres, para lidar com o luto. Perguntava por que isso acontecia.
Para tentar responder à Gisela e entender um pouco mais sobre o luto masculino falei de novo com o Ronaldo. Eu continuava acompanhando os seus posts, desenhos e ,mais recentemente, os vídeos de pai e filha no youtube. Neles, os dois pareciam genuinamente felizes. Minha primeira pergunta foi portanto o que havia feito nesses meses para retomar a alegria. “Eu não saberia dizer o que fiz, a vida é que nos levou”, respondeu. “Tomei algumas decisões importantes que ajudaram: optei pela simplicidade e por me dedicar a minha filha. Percebi que aí estaria minha chance de felicidade”.
Em sua nova vida, Ronaldo descartou o antigo projeto de ter sua própria empresa de publicidade. Preferiu continuar trabalhando em casa onde criou uma rotina doméstica que permite conciliar os cuidados com a filha, agora com 7 anos, com o trabalho de freelancer. “No começo eu tinha que acordar às 5h30 para trabalhar. Depois que a Rafa acordava ela não saía mais do meu lado. Ficava até na porta do banheiro enquanto eu tomava banho”. A situação, bastante familiar a muitas mulheres que trabalham e cuidam de seus filhos em casa, foi um grande aprendizado para o publicitário. Desde a morte da mulher, embora conte com o suporte das famílias, ele faz questão de cuidar da filha sozinho. ‘Eu tive sorte porque tanto a minha família como a da Eliane, embora estejam sempre disponíveis para ajudar, nunca interferiram ou questionaram o meu papel que é o de cuidar e tomar as decisões sobre a minha filha”.
“Eu tinha muito medo que ela entrasse em depressão e isso nunca aconteceu”, conta. Foram, no entanto, dois anos para que ela se adaptasse a uma nova vida. “Um ano depois da morte da mãe, minha enteada, Beatriz, hoje com 19 anos, que morava conosco, terminou o ensino médio e foi morar com o pai. Para a Rafaela foi mais uma perda. Nossa casa, antes sempre cheia, ficou vazia. Éramos só nós dois. ”.
Ronaldo acredita que seu luto é muito diferente do da sua filha. “O meu luto incluiu, desde o primeiro dia, a responsabilidade de cuidar dela. Eu a via triste e sentia a tristeza dela. Eu tinha que somar minha tristeza à dela. Achava que ela tinha a sensação da família se desmanchando. Primeiro a mãe, depois a irmã“.
Pergunto se ele tentou ocultar a própria tristeza da filha e ele responde que, embora tenha chorado diversas vezes na frente dela, ela diz que “nunca o viu chorando”. Entende que essa é percepção dela, e acha isso é bom. ‘Ela acha que eu sou feliz. Ela também é feliz”.
Ronaldo diz que, por muito tempo, respondeu a quem perguntasse como ele estava, “que a Rafaela estava ótima, muito bem na escola, etc e tal”. Até que um amigo o pegou no pulo: ‘Ronaldo, eu perguntei como VOCÊ está”. Para lidar com essa questão e outras igualmente difíceis, ele criou um personagem em seus desenhos, o “passarinho no alecrim” que conversa com ele em seus cartuns.
“Foram dois anos e agora estou começando a me livrar de uma bola de ferro que parecia que eu arrastava o tempo todo. Hoje, tudo parece muito mais claro para mim. No luto, a tristeza nos domina e nos impede de raciocinar. A melhor metáfora que encontrei foi a de um redemoinho que te puxa para baixo. Com o tempo, o redemoinho fica mais fraco e, em águas mais tranqüilas dá pra gente pensar mais em viver e não apenas em sobreviver”.
Até mesmo a raiva que inicialmente sentiu do médico que atendera a mulher na emergência do hospital e a dispensara sem o diagnóstico da meningite que a mataria em 24 horas, foi apaziguada. ‘Eu achava que ela poderia ter sido salva e cheguei a ir ao hospital procurar aquele médico. Felizmente não o encontrei naquele dia. O tempo foi passando e fui aprendendo algumas coisas. Descobri que o primeiro estágio da meningite é muito difícil de ser detectado e que talvez nem fosse culpa do médico o fato de ela não ter apresentado sintomas claros. Entendi que era mais importante cuidar da minha filha do que brigar na justiça“.
Rafaela continua a desenhar, mas agora gosta também de fazer vídeos e contar sua história e dar dicas no youtube. É muito extrovertida, adora conversar com adultos e não se constrange em dizer que a mãe morreu. “A Rafaela gosta muito de conversar e já entendeu que falar sobre a tristeza e a saudade ajuda muito. Outro dia eu entrei no quarto dela e vi que ela estava chorando. Estava brincando com suas bonecas de mamãe e filhinha e ficou triste por ela mesma não ter mais a sua mamãe. Eu me sentei ao seu lado, ficamos juntinhos e conversamos. Ela quis fazer um vídeo para contar que falar com o pai sempre a ajudava a espantar a tristeza. Ela está sempre surpreendendo o pai. “O meu maior aprendizado com a Rafaela foi a resiliência , de como ela gosta de falar e está determinada a ser feliz e não se entregar”.
Recentemente, Rafaela disse ao pai me que não sabia mais se desenhar fazia mesmo a saudade passar. “Será que eu estava mentindo, pai?” Ronaldo tem certeza que não. “Já faz dois anos e eu vejo que as suas emoções mudaram muito. Ela já não desenha mais com a uma emoção igual, e os problemas e as situações que a vida lhe apresentam são outros. Ela me contou por exemplo que um coleguinha disse a ela que a mãe dela nunca iria amá-la porque estava no céu. Ela ficou arrasada. Eu também.
Ronaldo e Rafaela cultivam a ideia de ajudar outras pessoas a enfrentar situações como essas. Por causa do blog, da página do facebook e por ter participado do programa de entrevistas da Fátima Bernardes na TV para contar sua história de luto, ele recebe muitas mensagens de gente que sofre a dor da perda. Tenta responder e passar mensagens positivas e já entendeu que o luto é muito singular, vivido de forma muito diferente por cada um. Seu plano é escrever um livro em que vai reunir os seus desenhos de forma cronológica e contar como tem vivido. “A ideia é contar nossa história com os meus desenhos e os da Rafa, e incluir o texto de uma psicóloga especialista em luto para dar a orientação possível a quem está passando por isso. Quero mostrar que o luto é um processo. A gente não aceita a morte de alguém, a gente se adapta a ela. Também não gosto da palavra superação, que pressupõe um esquecimento, mas do sentido de adaptação”
E se o passarinho no alecrim perguntasse hoje se ele está feliz?. ‘Estou há dois anos refletindo sobre o que é a felicidade. E outro dia eu estava aqui trabalhando, a Rafa desceu do quarto toda feliz. Fiz um lanchinho pra ela, comemos juntos e eu pensei: puxa, acho que felicidade é isso. Somos felizes, sim”
(Na próxima semana, voltaremos a falar sobre o luto masculino com a história do ator Luciano Braga Silva, pai da Amora e do Teo, que perdeu a mulher, Eduarda, há quase três anos)