Inspiração - Belas Histórias
A cura pela beleza
Na foto que ilustra este post, Cris Guerra aparece rindo e chorando ao mesmo tempo no aniversário de 80 anos de uma tia. A imagem registrada por um primo traduz aquilo que a escritora conhece muito bem e não se cansa de mostrar em seus escritos – tristeza e alegria são dois lados de uma mesma moeda, assim como beleza e feiura, morte e vida… Nessa segunda e última parte da entrevista ao “Vamos Falar Sobre o Luto?”, a autora de “Para Francisco” (livro em que apresenta o marido falecido ao filho, que acaba de ganhar edição especial de 10 anos) fala sobre a decisão – tomada por ela desde sempre – de optar pelo lado mais iluminado das coisas.
O Francisco já leu o “Para Francisco”? Como ele lida com essa história toda?
O Fran não fala muito sobre isso. Acho que ele sabe que tem um pai – a presença do pai é muito clara – mas o assunto é um pouco nebuloso. Não só eu mas também uma série de pessoas fala com o Francisco sobre essa história e eu acho que na cabeça dele ela vem com alguma confusão, uma certa pressão e um pouco de envaidecimento. Ele não lê o livro ainda por livre e espontânea vontade, fiz um videozinho dele lendo um trecho mas aquilo foi um episódio. Acho que a linguagem é ainda um pouco adulta para a idade dele. O mais legal é saber que essa memória vai ficar guardada mesmo depois que eu não estiver mais aqui. Ele vai ler quando sentir mais falta. Até agora não fez.
Qual é a principal mensagem que você quer passar com o livro?
A vida não é o que nos acontece mas sim o que a gente faz com o que nos acontece. O [filósofo Jean Paul] Sartre tem uma frase que diz mais ou menos a mesma coisa, então eu não sou muito original… Mas nunca li Sartre, aprendi isso vivendo. Eu digo nas minhas palestras que a vida não tem controle e o importante é saber diferenciar aquilo que podemos controlar daquilo que não podemos. Aceitar o que não está sob nosso controle e tomar as rédeas do que está. Eu acho que a morte nos ensina muito porque ela não é um problema a ser resolvido, não é uma doença – ela é um desfecho, um fato. Diante dela só nos resta vive-la da melhor maneira possível… Ela é a maior prova de que a vida não está sob nosso controle. Viver perdas importantes muda a maneira de encarar a vida. Eu, por exemplo, já não complico aquilo que não precisa ser complicado, não faço tempestade em copo d’agua. Se cada morte nos obriga a renascer – e renascemos ao sermos obrigados a aprender a viver sem a pessoa que partiu – é melhor renascer numa versão melhorada, não? (risos)
E os nascimentos, o que te ensinaram? Especialmente o nascimento do Francisco, é claro.
Quando um filho nasce você olha para o mundo de novo e deseja que ele se apresente – o mundo – na sua melhor forma. Não se trata de dourar a pílula, mas de acreditar na potência da vida, sabe? No meu caso, escolhi acreditar nela mesmo em circunstâncias difíceis e não planejadas. Como naquele filme “A Vida É Bela”, fiz a escolha de acreditar que a vida pode ser bonita e de cultivar a esperança de que ela poderia ser bela lá na frente. Durante o primeiro ano do Francisco, escrever foi construir esperança para ele e para mim. Outras coisa que me ajudou nesse exercício de esperança foi o amor pela moda.
De que maneira a moda te ajudou?
Comecei a fazer o [blog] “Hoje Vou Assim” um mês e meio depois de começar o “Para Francisco” e para mim ele representa, literalmente a cura pela beleza. Na moda eu exercitava o meu olhar para o futuro, para a esperança. Eu precisava trazer beleza para a minha vida. Quando uma mulher dá à luz ela tem de voltar a ser uma só depois de ter sido dois durante quase 10 meses. Mas ela nunca volta a ser quem era… O corpo passou por uma enorme transformação, então ela está num processo de reconhecimento desse corpo. Quem sou eu agora? Quem sou eu agora depois de ter carregado uma criança dentro de mim? E como serei eu daqui para a frente? Que novo corpo vai ser esse? O “Hoje Vou Assim” me ajudou no processo de luto do Gui mas também a fazer essa reconciliação com o meu novo corpo… E essa reconciliação com o corpo coincidiu com o momento em que eu também estava me reconciliando com a vida. Eu acho que o “Hoje vou Assim” foi a salvação do “Para Francisco”, evitou que ele virasse um melodrama completo.
Na época do lançamento do “Hoje Vou Assim” você me disse que algumas pessoas criticaram você por causa dele… Como se o exercício da vaidade fosse incompatível com o luto.
Sim! Eu me lembro que com 15 dias de parida eu tive um aniversário e escolhi a roupa pensando “tenho de mostrar aquilo que estou podendo mostrar”. Fui com um vestido bem curtinho, com as pernas de fora… Uma grande amiga comentou “jura, Cris?!”. Mas eu não me importava com as críticas porque precisava tanto me sentir mulher! Eu precisava me sentir viva! Nessa época eu comprei mais roupas. Estar bonita era uma forma de me sentir inteira e de não me abandonar. No final da gravidez eu me sentia muito linda e esse foi um período que o Gui não teve tempo de ver. A gente tinha combinado de fazer aquelas fotos tradicionais do casal grávido… No dia da morte dele o fotógrafo me ligou chorando e nós dois chorando assumimos o compromisso de fazer as fotos de qualquer jeito. Eu fiz e foi muito bom.
É impressionante ver o quanto o constrangimento diante do luto é, digamos, abrangente. As pessoas não estão preparadas para lidar com a dor do outro independentemente da maneira como ela se apresente – seja como tristeza, desespero ou mesmo como explosão de força vital, no seu caso… Como foi voltar à vida prática – ao cotidiano – depois da morte do Gui?
O “Para Francisco” foi uma maneira pacífica de estabelecer uma convivência com as pessoas naquele momento. Eu tinha necessidade de falar sem parar sobre a minha dor e canalizar essa necessidade para a escrita foi uma maneira de poupar os outros do meu excesso. Não estamos, como sociedade, preparados para lidar com alguém em luto. As empresas não estão preparadas. Depois que o Gui morreu eu fiquei só uma semana sem trabalhar. E nessa semana perdi quatro quilos. O Francisco graças a Deus não perdeu nada, mas eu emagreci, eu não queria comer, não queria me levantar, mas tive de voltar ao trabalho e fiquei trabalhando até os últimos momentos antes do parto. Eu era diretora de criação numa agência de publicidade e muitas vezes trabalhava até de madrugada com aquele barrigão… Depois que o Fran nasceu, meu chefe pediu que eu retomasse o trabalho 45 dias depois do parto e eu voltei porque tive medo de ser demitida. Fiquei 20 dias trabalhando e isso foi suficiente para o meu leite secar. Foi tão triste e eu me senti tão mal que decidi que não queria mais trabalhar naquele lugar. Fui bater na porta da agência onde eu tinha trabalhado antes e a minha antiga chefe disse que me contrataria sim, mas só depois da licença maternidade, porque ela achava que era em casa que eu devia estar. Daí eu voltei para a licença maternidade com a alma mais tranquila, sabendo que eu teria trabalho.
Qual é hoje o seu sentimento em relação a esse chefe que interrompeu a sua licença maternidade?
Sabe que ele é uma pessoa de quem eu gosto? Não tenho raiva dele, não guardo mágoa, porque acho que ele não tinha capacidade de entendimento. Tem gente que não tem uma perna ou um braço, tem gente que não tem sensibilidade. Ponto. Uma vez ele me disse que achava que eu tinha ficado mais triste na época em que eu e o Gui nos separamos do que na morte do Gui. Realmente eu sofri muito nessa época em que ficamos separados… Eu respondi que separações também são lutos.
Nessa fase mais aguda do luto, o que te ajudava?
Falar sem parar… E fazer piada de vez em quando! Eu fazia piadas da minha situação.
Como as pessoas podem ajudar quem está de luto?
O que as pessoas próximas podem fazer é ouvir, porque quem está de luto muitas vezes precisa falar sem parar, repetir mil vezes as mesmas coisas. Há que se ter muita paciência e compreensão… Tenho uma amiga que no dia da morte do Gui chegou lá em casa com um CD e colocou um mantra no meu som. Eu tive vontade de jogar o CD com o mantra na cabeça dela. Eu sei que ela estava querendo ajudar… Mas não tem alívio possível no começo, então o que se pode fazer é estar presente e entender o que a pessoa precisa… Estar à disposição dela para o que ela precisar em vez de tentar direcioná-la para uma ou outra coisa.
Como foi trabalhar durante o luto? Era possível trabalhar?
Não consigo me lembrar exatamente como era, porque eu estava lá, de corpo presente, mas estava totalmente ausente. Eu só me lembro que doía. Nossa, que dor! Eu ficava no meu escritório e olhava para a Débora, uma menina da minha equipe, e ela vinha até mim e abraçava a minha barriga e eu só chorava. Era tanto desânimo, tanta dor… Eu achava que nunca ia passar. A gente acha que nunca vai passar, mas passa.
Leia a primeira parte desta entrevista clicando aqui