Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Vamos falar de… luta? “11 de novembro de 2023, 23h40”

Neste relato impactante de um pai transformado pela morte da filha, o filósofo Fernando José de Almeida nos conduz pelo quebra-cabeças enigmático do suicídio, desde a dor inenarrável à ressurreição possível de quem sobrevive ao que chamou de “tsunami na alma”

Comecei a escrever este texto como quem se entrega à tarefa de montar um quebra- cabeça cujas peças mais importantes são exatamente as que faltam. Tenho as molduras, as nuvens do entorno, vejo alguns pedaços de gramados, florestas azuladas lá longe e apresentam-me, claros, alguns pedaços de pessoas.

É na busca da alma que acontece o desenho das minhas peças faltantes para montar o quebra-cabeças. E, de agora em diante, estou indo nesta aventura, dolorida e necessária. A busca da alma. Irei adiante, mesmo que saiba, de partida, que o risco de  encontrar nada seja grande. Corro o risco, ainda, de criar uma fantasia precária. Com esta clareza-obscura vou a ela.

Na entrada do umbral da criação de peças, há regras do jogo que mostram as funções dos encaixes, suas minudências e falsas pistas. A primeira é que há suicidas que não deixam rastros, levam consigo tudo que viveram de riqueza e tristezas da vida e as suas decisões. Neste caso, se os convivas e almas próximas não o registraram ou se não vivenciamos com a pessoa as suas vidas, as pegadas se apagam. Ficamos sem possibilidade de entender por onde entrou no mar nem quando. Portanto, muito menos o porquê. Sobram-nos, assim, suposições, milhares delas, que serão, para sempre, apenas suposições.

A segunda regra das pistas, marcas, causas, pegadas, rastros é a intenção duvidosa de deixá-las registradas e disponíveis, por parte dos que tomam tal decisão. Queriam ou não? Deviam ou não, precisavam ou não, realizariam uma finalidade ou não? Aquele que registra, nesta segunda hipótese, quer e não quer se expor? Mas apesar de ter escrito, fotografado, produzido poesias, obras de arte, ter tido sonhos registrados, produzido filmes, estes reprodutores de suas angústias e vitórias, raivas e ternuras, desprezos e generosidade, em material belíssimo, pedem para destruir, queimar, lançar em cinzas ao mar o que fizeram.

Acho que pode ser uma forma íntima e angustiada de dizer: pode ser que eu me esqueça disso! E não posso me esquecer. Posso retomar uma vida melhor se não me esquecer disso!

Ou registra tudo na esperança de ler dois anos depois e ver como evoluiu e conseguiu sair das arapucas, dos contos de terror, da noite sombria ou do pesadelo? Seriam tais escritos um marco de suas lutas, traçado com cores trágicas, para ao relê-los mais tarde comemorar a superação de todas elas?

Lorena pediu para queimarmos tudo que ela deixou escrito sobre si. Sobre suas angústias e alegrias. Atendemos seu desejo.

Era o dia 11 de Novembro de 2023, às 23h40. Envio por e-mail aquela que seria a última mensagem para minha filha. Faço um convite para ela almoçar conosco no dia seguinte, domingo. Além do convite para o almoço, postei como anexo um trabalho seu de conclusão do ano no qual fiz alguns parcos ajustes a pedido dela.

Era seu costume me pedir uma revisão de seus trabalhos para as disciplinas de seu curso de Psicanálise. Fazia o pedido mais por insegurança do que pela possível pouca qualidade do trabalho, aliás, preocupação desnecessária, pois sempre tirava boas notas  com elogios das professoras. O seu curso seria concluído daí a seis meses. Estaria formada em Psicanálise.

O texto não precisaria de revisão, mas eu queria mostrar-lhe que li tudo, tudo. E então procurei e achei aquelas minudências, como aquelas que corrijo quando preciso enviar trabalhos para revistas científicas.

Dormi.

No dia seguinte, duas amigas nos ligam de manhã constatando que Lorena não atendia o telefone. Fomos rapidamente para lá.

A tragédia estava instaurada e consumada.

Em geral, a narrativa histórica de um suicídio é omissa em sua trama para os parentes e amigos. O fim da história sempre é nebuloso e oculto. Mas absolutamente claro depois que acontece.

Acho mesmo que se pudéssemos antecipar todas as percepções, dores, sonhos, escuridões, inseguranças, incógnitas, escuridões que nossos amados sentem nós mesmos não suportaríamos. Seria como antever a própria morte.

No caso de nossa filha, foi um desfecho explosivamente impensável. Humanamente inenarrável. Inexequível até o último segundo.

A sua história era percorrida por um grande número de vacinas psíquicas contra a autodestruição e com qualidade de vivências que deveriam tê-la tornado imune para sempre. Assim pensávamos nós, nos sonhos de pais. Nunca sua história terminaria assim!

A primeira vacina eram os seus dois lindos e carinhosos filhos. A primeira proteção vinha da sua filha, que fez 18 anos quatro dias antes, numa pequena festa familiar da qual Lorena participou com todos os cantos e o “é pic é pic” tão próprio dos paulistanos. Além disso, a sua filha, aniversariante, faria exames vestibulares para Letras na USP, nas semanas seguintes. Todos nós tensos e mobilizados para dar apoio. (A filha passou e hoje é graduanda do 2º ano do curso de Letras – Português-Francês, na USP!).

O filho, àquelas alturas com 15 anos, era grande esteio da amorosidade entre os três membros da “petite famille”. Até hoje não perdeu este papel.

O número enorme de amigas e amigos pode ser classificado de multidão que acompanhou seu velório, enterro, missa de 7º dia e, depois, de um ano. Seria outra vacina ou muralha inexpugnável, imaginava eu, contra a desesperança.

Nenhuma das vacinas funcionou.

Posso, sem dúvidas, afirmar que a morte da Lorena, aos 43 anos, foi sentida devastadoramente por milhares de pessoas. Devastadoramente não é força de linguagem.

E é a partir desta dor pessoal e coletiva que vou refletir aqui, depois de um ano e meio de sua partida.

Foi de fato uma dor coletiva. Não conseguimos, minha esposa e eu, separar o que foi nossa dor do que foi a dor de tantos. Dos filhos, da irmã, das duas sobrinhas, do pai de seus filhos, da tia e, com enorme intensidade, da malta de amigas e amigos que cultivava dia a dia.

UMA PARADA

Aqui, neste bloco de notas, não quero as causas. Elas estão sepultadas nas emoções da Lorena – agora apaziguadas – e daquelas que se embaralham na vida dos vivos que conviveram com ela e aqui ficaram. Não mais é questão de entender, explicar, verificar-lhes as causalidades, mas de deixar entrar no coração, nos pulmões, nos músculos e nos ossos aquilo que é o oxigênio da energia da compreensão da vida e da morte.

Os mesmos mares profundos que nos assustam são os que também nos alimentam e permitem-nos escavar as esperanças.

Aqui trago as reflexões de uma pessoa que apareceu do nada, mas entrou como se fosse um amigo de décadas (mesmo que não soubesse e que eu não o conhecesse pessoalmente) quando li seu texto, no momento da maior vertigem do meu sofrimento. O texto se chama ‘Que a vida Siga!’ O nível de elaboração e amadurecimento das reflexões trazidas por Andrés Bruzzone, aqui neste site –leia aqui.

A sua dor imensa foi um lenitivo para mim. “Dá para enfrentar”, pensei. Não há na dor dele nenhum descrédito ao filho. Não revela compreensão racional nem tenta dizer: vai passar. O sentimento que me trouxe foi de “aguente firme pois a assimilação da dor em forma de paz é um processo que exige muita sabedoria”. Afinal, na ecologia e na economia da perda, outros valores vão se juntar à mensagem deixada pela vida de quem escolheu partir sem consultar.

LUTO: MODOS DE USAR

A bula dos modos de usar o luto está sempre dentro da caixinha que o protege. Mas suas fórmulas são escritas com letrinhas minúsculas, minusculinhas, não nos poupam de explicitar as consequências de seus usos prolongados nem de sua dosagem conforme a idade ou os riscos das doenças colaterais. Outro problema.

Você pode voltar outro dia para analisar as contra-indicações e, para sua surpresa, elas já mudaram. Então percebo que é melhor deixar correr sem tanta fé nas experiências estatísticas ou programáticas dos outros e assumir os riscos do luto por minha conta. Como enfrentar a dor com seus guias internos e com seus embates com os próximos, amigos e outros que sofreram do mesmo mal?

O sentimento de luto toma conta sem pedir licença. Não se sabe o que ele traz, como se instala, como usa seu poder devastador, como é silencioso ou contagioso. Ele invade, arromba ou sorrateiramente se instala onde quer, e não se sabe por quanto tempo ele imperará. Pode entrar na nossa pele pela falta de apetite, pela vontade incontida de dormir ou pela perda do sono. Chegar à mesa para o café da manhã pode ser o desencadeador da saudade ou da tristeza inesperadas. Tomar o banho matinal tira a poeira dos sentimentos também. E ela, a dor saudosa, salta de dentro d’água e se debulha nos olhos, já molhados – não há toalha que as enxugue. Depois passa.

Eu luto com o luto.

Tristeza e combate andam juntos. Não é combate ao luto. Mas combate com o luto, para esmiuçar-lhes as intenções, as promessas, os horizontes, as perversidades a serem compreendidas para a sobrevivência na selva, na escuridão, na solidão, na absoluta presença dos filhos da Lorena e da mãe dela e na minha.

A bula já ficou longe. Não bula mais com ela, pois a luta do luto é contraditória, inimiga, íntima e gloriosa, pois o luto imiscui-se desde o nascimento, como promessa e ameaça.

O luto não permite trégua, quem faz trégua com o luto sucumbe a ele. O luto não pode ser percebido, compreendido, entendido por um observador externo. Pode ser narrado, descrito, analisado, mas nunca compreendido. Não digo isso por indiferença minha para com o que os “externos” têm com a experiência de nossas dores e tragédias. Eles têm tudo a ver conosco. Empatia, solidariedade, compaixão, comiseração, sintonia, amor, mesmo, mas a dor é incomensurável e incompartilhável, dependendo da intensidade e das minúcias pelas quais a dor se instala dentro da gente.

CREIO NA RESSURREIÇÃO DOS VIVOS

Eu tenho vivido a sensação da ressurreição.

O sentimento da ressurreição a partir da experiência de um filho morto é nada mais que o acordar de ressaca. Mas é acordar.

A perda de uma filha ou um filho nos deixa semi-mortos entre os vivos.

Daí que nós vivemos uma ressurreição dos vivos, renascemos de uma morte que não é a nossa! É um mistério e milagre que só nós podemos relatar. E provavelmente cada um tem o seu processo de criar tal milagre para superar a própria angústia da decomposição de nosso ser em vida.

O luto é um terremoto, um tsunami bem no meio da alma. Portanto, inescapável. Não deixa pedra sobre pedra. Nenhuma árvore viva. Sem uma brisa ou luminosidade. Sobram só as baratas simbólicas.

Não sou mais nada do que fui.

O tsunami fez seu efeito. Destruiu tudo. Por isso, minha tarefa de escrever um texto sobre o que vivo é a única forma aparente e provisória de minha reconstituição. Mas não é uma punição. Este exercício se apresenta como uma saída. Ousada, arriscada, incerta, mas que me atrai como nada.

Fernando José de Almeida é filósofo, pedagogo e professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo há 50 anos.